Na tarde de primeiro de abril de 1964, passei pela sede de Última Hora, na Rua Sotero dos Reis, perto da Praça da Bandeira, onde hoje, parece, funciona a zona do meretrício. Tinha ficado até a madrugada na Redação e voltava, já ciente de que o golpe fora dado. O prédio estava fechado e um motorista da garagem em frente, que guardava os jipes do jornal, me avisou que ele iria ser empastelado: um animador de auditório conclamava, havia horas, ao vivo, na TV, asseclas para a tarefa. A caravana, armada e barulhenta, passou por mim, eu saindo, eles entrando, justo no ponto em que a rua cruza por debaixo a estrada de ferro.
Dei longa volta pela cidade do Rio de Janeiro. Em alguns pontos da Tijuca, morada tradicional de militares, havia comemorações, euforia e bandeiras nacionais nas janelas. Também em algumas ruas da Zona Sul – mais Leblon que Copacabana – onde vivia gente abastada. Mas no resto da cidade – ao longo da Avenida Suburbana, pelos bairros da Central, da Leopoldina, da Penha a Madureira, lugares em que me crei e vivi – era um por de sol silencioso de ruas vazia e lojas fechadas.
Enquanto eu passeava e testemunhava, a expedição empasteladora invadiu o prédio de Última Hora e alguém deu um tiro na porta de vidro que ficava em frente a corredor de entrada, revestido de madeira cor de mogno. O vidro era a prova de balas (a sala fora usada em outros tempos como pagadoria) e o tiro deve ter ricocheteado, porque, quando voltei à noite, havia um pouco de sangue no chão. Subiram as escadas, quebraram tudo na Redação, mas não chegaram ao terceiro andar, onde ficava a contabilidade e as salas da diretoria do jornal porque a escada era protegida por portas pantográficas. Foi lá que produzimos a edição do dia 2, quatro páginas com matéria neutra.
“Vai durar…”
O jornal só rodou porque a malta de invasores, suponho que assustada com o ricochete no vidro, deixou de atravessar outra porta, logo adiante, à esquerda de quem entrava, também envidraçada, mas sem qualquer proteção: atrás, ficavam as linotipos, as ludlows, as mesas para as ramas e tudo mais necessário para a composição tipográfica. A impressora rotativa estava instalada no subsolo de outro prédio, na Avenida Presidente Vargas, construção modernosa erguida no início da década de 1950 para abrigar o Diário Carioca.
Tudo parecia muito incerto. Mas, dias depois, numa calçada da Avenida Rio Branco, quando ainda se ouviam em ondas curtas rádios do Sul tentando organizar alguma resistência sob a liderança de Leonel Brizola, João Saldanha, entendido em muito mais coisas do que futebol, me disse: “Isso vai durar uns vinte anos”.
De fato, a inteligência do país demorou para despertar – de alguns dias, como lembra esse texto, até muitos e muitos meses – e iria pagar por isso nas prisões da ditadura.
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Nilson Lage é jornalista