Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

‘Não tenho nada do que me arrepender’

Fevereiro de 1967. O economista Delfim Netto, que acabara de deixar a Secretaria de Finanças no governo paulista de Laudo Natel, recebe em São Paulo a visita do coronel Mário Andreazza. Na pasta, Andreazza levava o convite do então presidente Costa e Silva para que Delfim assumisse o Ministério da Fazenda. Delfim tinha 38 anos.

Foram sete anos no cargo, nos governos Costa e Silva e Médici, período marcado por grandes obras públicas e crescimento acelerado do PIB. Para os críticos, Milagre Econômico feito às custas de arrocho salarial, endividamento externo e manipulação de preços. Na administração Figueiredo, Delfim voltou primeiro para a Agricultura (de março a agosto de 1979). Com o pedido de demissão de Mario Henrique Simonsen (que lhe sucedera na Fazenda no governo Geisel), foi para o Planejamento, onde permaneceu até março de 1985.

Hoje, prestes a completar 86 anos (em 1º de maio), Delfim diz que não se preocupa com o veredito dos livros. Em entrevista, na última segunda-feira, diz que “não tem nada do que se arrepender” e defende o legado de 1964, ao afirmar que o governo João Goulart “estava completamente desorientado”. Durante a conversa, reagiu com veemência em dois momentos. No primeiro, negou interferência dos militares na gestão econômica. No segundo, rebateu a ideia de que sua gestão na Fazenda foi facilitada pelo regime de força. Segundo ele, tudo o que foi feito caberia num período de democracia plena.

O senhor diria que 1964 foi uma revolução ou golpe militar?

Delfim Netto – Pode escolher a palavra que quiser. Se recuperar as informações, vai ver que a sociedade estava em pânico. O governo não existia, estava completamente desorientado. Havia uma desconfiança brutal entre a sociedade e o governo. Aquelas passeatas todas não caíram do céu.

Mas o senhor acreditou no fantasma do comunismo?

D.N. – Você acredita que era fantasma? É óbvio que existia uma ameaça. Pior, não era de comunistas; era de ignorância.

Como assim?

D.N. – Na verdade, era uma tentativa de fazer um curto-circuito e substituir o sistema. Eu dou risada agora. Porque diziam: “Eram todos democratas”. Mas não tinha um democrata.

Qual o legado de 1964?

D.N. – O que estamos vivendo é um legado de 64. A atual Constituição, por exemplo. A História tem todo um processo, o que aconteceu e o que resultou no que estamos hoje. O Brasil hoje é um país muito melhor do que foi no passado.

Necessariamente, deveríamos ter passado pela experiência militar?

D.N. – Não necessariamente. Isso é um marxismo de pé quebrado. A História passou por onde tinha de ter passado. Ou melhor, por onde o acidente a levou.

Poderia ter sido pior na época?

D.N. – Poderia ter sido uma Cuba ou Coreia do Norte. O parque jurássico está aberto para mostrar o que seria.

O senhor foi o ministro da área econômica mais poderoso no período. Considera que os livros de História fazem justiça ao seu trabalho?

D.N. – Não me interesso por isso. Acho deplorável, eles não fazem nada além da pura demagogia, ideologia, não têm conhecimento de nada. São de uma ignorância brutal. Só me divirto. Não fico triste, porque quem será julgado pela História serão eles.

Agrada a imagem de Milagre Econômico dada àquele período?

D.N. – Nunca houve milagre. Milagre é efeito sem causa. É de uma tolice imaginar que o Brasil cresceu durante 32 anos seguidos, começando na verdade em 1950, a 7,5% ao ano, por milagre.

Então, cresceu por quê?

D.N. – Porque o Brasil trabalhou, poupou, aumentou sua participação externa, reduziu a inflação.

Os adversários dizem que foi graças a um arrocho salarial, endividamento externo e manipulação de preços.

D.N. – Todos melhoraram, mas alguns melhoraram mais que outros. Quem eram esses que melhoraram mais? Exatamente aqueles que tinham sido privilegiados com educação superior e cuja demanda cresceu enormemente no processo de desenvolvimento. Tinha um exército industrial de reserva enchendo o primeiro decil (os 10% mais pobres). E tinha um número muito restrito, no décimo decil (os 10% mais ricos), de pessoas que tinham sido beneficiadas pela educação. Ampliou a distância entre eles, mas todos melhoraram. É coisa muito simples. E as pessoas diziam: “Você queria primeiro crescer e depois distribuir”.

Dividir o bolo.

D.N. – Esta frase nunca passou pela minha boca. Disse que não se pode distribuir o que você ainda não produziu, a não ser que você tome emprestado.

E a manipulação de preços?

D.N. – Não houve manipulação de preços, o que houve foi o controle de oferta. Se tinha uma chuva como agora em São Paulo, um sujeito no Paraná ou em Minas dizia: “Manda mais caminhões para São Paulo ou para o Rio”, de tal forma a calibrar a oferta. Houve trabalho para fazer isso, não caiu do céu. Foi administração legítima.

Então, por que a FGV corrigiu a inflação de 1973 (dos 15,5% originalmente anunciados para 20,5%)?

D.N. – É uma questão de levantamento. Se ela (a FGV) melhorou o levantamento, está tudo bem. Qual o problema?

Também pesa sobre o senhor responsabilidade pelos efeitos da crise externa de 1982, depois da adoção de uma maxidesvalorização e da indexação de salários.

D.N. – A crítica básica na época era: “Você não poderia ter crescido”.

Simonsen defendia um ajuste de caráter recessivo.

D.N. – Simonsen era uma figura extraordinária, mas foi embora porque quis. Foi embora porque sabia que tinha quebrado o Brasil, junto com o Geisel. Naquele momento, o mundo estava numa crise gigantesca. Com o aumento dos preços do petróleo e dos juros americanos, quebrou o mundo. Se estou quebrado, cresço 8% ou cresço 4%? Cresço 8%, porque já estou quebrado mesmo. Se tivesse crescido só 4%, teria jogado fora quatro pontos do PIB, e com resultado nulo. É tão simples assim: o Brasil quebrou porque quebrou o mundo.

Se pudesse, mudaria alguma medida, alguma decisão tomada?

D.N. – A gente tem de olhar o que aconteceu levando em conta o que se sabia na época e as circunstâncias. Não tenho nada do que me arrepender.

Há também a crítica de que existia uma onda de ufanismo exacerbado, falso, que fez mal no país.

D.N. – Todo governo gosta de um pouco de publicidade. O Brasil do “ame-o ou deixe-o” era parte da história em que você tentava construir um nacionalismo. Mas não tinha nada de mau que produzisse coisa defeituosa, que pudesse deturpar a mentalidade dos brasileiros.

Adotou alguma medida que numa democracia plena não poderia ter saído do papel?

D.N. – Provavelmente, não. Simplesmente as coisas aconteciam um pouco mais depressa. Tudo poderia ter sido feito em outro regime, em que talvez demorasse um pouco mais para o convencimento da sociedade. Mais nada.

Os militares tiveram influência na sua gestão?

D.N. – Nunca, nunca entrou no meu gabinete um oficial fardado. Nunca, nunca houve a menor interferência militar na administração civil.

Durante a análise do texto do AI-5, o senhor defendeu uma concentração ainda maior de poderes. Por quê?

D.N. – Fizemos uma reforma tributária que durou 25 anos. Em 1973, o Brasil era citado pelo Banco Mundial como exemplo nessa área.

Quer dizer que no tempo dos militares as coisas eram melhores?

D.N. – É você que está dizendo isso.

O senhor já disse que não tinha conhecimento de casos de tortura. Mas é difícil imaginar que um ministro tão poderoso não soubesse de nada.

D.N. – Tortura é condenável em qualquer hipótese. Uma vez perguntei ao presidente Médici se havia tortura. Ele me disse que não. Nós ouvimos, como todos, coisas aqui e ali. Acreditei nele.

Não deveria ter acreditado tanto?

D.N. – Confiei porque era um sujeito correto, decente.

Nesse ponto, os militares deveriam se retratar por alguma coisa?

D.N. – Aconteceu, aconteceu. Houve coisas que foram deploráveis. No fundo, se fez um arranjo no governo Figueiredo para a transição que tem de ser respeitada, e ponto final.

Há testemunhos de que o senhor ajudou a obter dinheiro do setor privado para financiar a caça a opositores. A chamada Operação Bandeirantes (Oban), em meados de 1969.

D.N. – Isso não existiu.

Mas o senhor nega participação em reunião com banqueiros?

D.N. – Nunca houve discussão de financiamento para a Oban em lugar nenhum do governo. O objetivo dessa reunião foi falar sobre taxa de juros, que já era uma obsessão.

É possível imaginar um novo 1964?

D.N. – Não tem nada de novo 64. Isso terminou porque o processo histórico nos impôs uma Constituição (de 1988) da qual saíram instituições muito mais robustas. É inimaginável hoje uma situação fora do regime democrático. Mesmo porque as pessoas aprendem.

Durante o regime militar, o senhor acumulou inimigos poderosos, foi chamado de czar da economia. Hoje, é consultor informal do governo, que tem raiz num partido de esquerda. Quem mudou mais: o senhor ou os inimigos?

D.N. – Eles se aproximaram de mim.

Isso significa que ficaram mais sábios?

D.N. – Não sei. Não sou sábio. Bem mocinho, pretendia ser um socialista fabiano (movimento criado no fim do século XIX cujo objetivo era a busca dos ideais socialistas por meios graduais e reformistas). Só me livrei disso estudando Economia. Para mim, é tudo um processo.

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Aguinaldo Novo, do Globo