O país continua refém das forças que deram o golpe e impedem mudanças que aprofundem a democracia num sentido social e econômico
Se for verdadeiro o adágio de que “o brasileiro não tem memória”, não é por falta de informações e análises publicadas, pelo menos sobre o golpe de 1964 e o tempo da ditadura. As obras contam-se às centenas, escritas nos últimos 50 anos por jornalistas, memorialistas, economistas, sociólogos, cientistas políticos, historiadores e outros, até mesmo das gerações mais jovens. Talvez nenhum outro período tenha sido esquadrinhado tão detalhadamente em seus aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais.
As interpretações sobre o golpe e seus desdobramentos são variadas. Algumas enfatizam o tema como indissociável das mudanças do capitalismo brasileiro, outras centram-se nos impasses do sistema político, terceiras na cultura política autoritária e conciliadora ou até mesmo na ação de agentes individuais, ora mirando a especificidade da ação militar, ora suas conexões com a sociedade civil. Cada corrente analítica aponta deficiências em suas concorrentes, embora todas busquem evitar simplificações.
Para além das querelas e da especialização das pesquisas, é importante incorporar as diversas contribuições, compreender a complexidade de cada conjuntura, a mescla de repressão e busca de convencimento, sem minimizar as diferenças no interior do regime nem perder de vista um aspecto central: a ditadura não foi um acontecimento isolado da história do Brasil, antes um capítulo decisivo do longo processo de industrialização e urbanização caracterizado pelo que alguns chamam de modernização conservadora, outros de via prussiana ou revolução passiva.
Trata-se de uma característica da política brasileira até hoje, em que as classes dirigentes tendem a se recompor e encampar a seu modo a pressão social por mudanças num país pleno de desigualdades, sem realizar transformações estruturais, em que o suposto “moderno” se combina com o dito “arcaico”, o “progresso” é indissociável do “atraso”.
Desafio mantido
O que esteve em jogo no pré-1964 foi a possibilidade de uma modernização alternativa, cujos contornos estavam apenas esboçados e eram objeto de disputas políticas, mas o sentido geral era o de alargar os direitos dos trabalhadores do campo e da cidade, politizando-os e diminuindo as desigualdades sociais, algo que os conservadores consideravam “comunismo”. No contexto da Guerra Fria –e numa sociedade como a brasileira, cujos privilegiados são tradicionalmente temerosos dos movimentos populares–, as reformas de base (agrária, bancária, eleitoral, tributária, educacional) que estavam na pauta do governo e das esquerdas pareciam ameaçadoras.
Abriam-se disputas, gerando incertezas sobretudo nas classes dirigentes, que preferiram apoiar o golpe de Estado, início de um regime que aprofundou a modernização conservadora, consolidada no período do “milagre econômico”. Ela não sofreu fortes abalos após a redemocratização, mesmo em governos liderados por partidos com raízes na oposição à ditadura, como o PSDB e o PT, que em nome da governabilidade fizeram alianças com forças que deram respaldo ao regime militar, reiterando a tradição conciliadora de negociação pelo alto, sem rupturas. O custo foi não realizar transformações de fundo, o que ajuda a entender os protestos multifacetados de junho passado.
Uma bela adormecida em 1984 nas manifestações pelas Diretas-Já que por encanto despertasse hoje ficaria espantada de ver Fernando Henrique Cardoso ao lado de Marco Maciel, Lula aliado a Sarney.
O país continua refém das forças que deram o golpe de 1964 e impedem mudanças que possam aprofundar a democracia política também num sentido social e econômico, diminuindo as desigualdades. O desafio continua posto, daí a atualidade da discussão sobre os acontecimentos de 50 anos atrás.
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Marcelo Ridenti, 54, é professor titular de sociologia na Universidade Estadual de Campinas e coorganizador de “A Ditadura que Mudou o Brasil”