O cinema, ficcional e documentário, faltou ao presente debate em torno dos 50 anos do golpe que deu origem à ditadura militar de 31 de março de 1964. Novos títulos com perspectivas diversas desembarcaram nas livrarias, canais de TV agendaram programas, aqui e ali podem-se ver ciclos com alguns filmes incontornáveis, mas quem procurar na tela grande não encontrará a “efeméride, com pesar pela má palavra”, como escreveu Janio de Freitas no belo artigo “Desmemórias“, na “Folha de S. Paulo” de domingo [16/3].
À infeliz falta de obras inéditas, não teria havido melhor oportunidade para reapresentar em circuito comercial “Jango” (1984), de Silvio Tendler, o pioneiro e ainda insuperado balanço fílmico da personalidade histórica central do processo que encerrou o breve interregno democrático entre 1945 e 1964. Incansável, Tendler prepara em parceria com a TV Brasil dois novos filmes sobre o período, enfocando os militares que se opuseram ao autoritarismo fardado e os advogados que ousaram enfrentar o regime que fez do quepe coroa.
Na coluna, Janio explica o silêncio que dedicará à discussão, preferindo “a posição de leitor/ouvinte” – e a ausência do termo “espectador” é reconhecimento da omissão cinematográfica. “As montagens picotadas do que se diz”, escreveu, “entremeadas das falas de outros, predominam aqui com um ligeireza que embaralha o relato factual ou impede a exposição de uma linha de pensamento”. Partilhando o desconforto com esse cenário nebuloso descrito por Janio de Freitas, quando eu mesmo há algumas semanas planejava redigir esta coluna, veio-me a imagem de que convivemos hoje com “1964”, o evento histórico e suas drásticas e dramáticas consequências para o país, e, parafraseando o romancista japonês Haruki Murakami, “1Q64”, o universo paralelo de narrativas, conflitantes ou parciais, que se apresentam hoje catalisadas pelo cinquentenário.
Como nas duas luas que compartilham o céu no mundo paralelo da célebre trilogia “1Q84”, parece haver duas posições polares que se destacam entre a algaravia de versões contemporâneas sobre o golpe. Uma está resumida no novo livro do historiador Marco Antonio Villa, “Ditadura à Brasileira, 1964-1985: A Democracia Golpeada à Esquerda e à Direita” (ed. Leya). A outra, no mais recente documentário a chegar às telas sobre 1964, “O Dia que Durou 21 Anos”, de Camilo Tavares.
“Estranha derrota”
Villa dedica o primeiro capítulo de seu livro a reconstituir a dinâmica que levou ao golpe a partir da mesma postura de vilificação de João Goulart (1919-1976) que já apresentara em seu retrato do presidente deposto, “Jango, Um Perfil” (ed. Globo). Em síntese, como lemos naquele primeiro volume, o historiador sustenta que “o desprezo pelos valores republicanos marcou a passagem de Jango pelos diversos cargos públicos que ocupou”.
Para Villa, Jango foi um político incompetente e oportunista, que tramara tanto para estender o próprio mandato quanto, posteriormente, para promover um “golpe de Estado”. Apenas a morte no exílio teria mantido “a lenda de um presidente democrata, reformista, que foi derrubado porque queria enfrentar os privilegiados. Jango foi um homem de sorte”.
A “lenda”, para Villa, é a base sobre a qual se erige o documentário de Camilo Tavares. Mas Jango surge aqui quase como um coadjuvante no processo que definiu seu trágico destino. “O Dia que Durou 21 Anos” bem poderia intitular-se “O Golpe Começou em Washington”, emprestando o título do livro publicado em 1965 por Edmar Morel (ed. Civilização Brasileira).
A partir de novos documentos textuais e audiovisuais do governo dos EUA e de entrevistas conduzidas pelo grande jornalista e escritor Flávio Tavares, seu pai, testemunha dos acontecimentos e amigo de Jango no exílio uruguaio, Camilo estrutura uma narrativa que, acentuando os agressivos embates do auge da Guerra Fria, transfere de Rio/Brasília para a capital americana o epicentro das tratativas para a derrubada de Jango e até mesmo para a escolha do marechal Humberto de Alencar Castello Branco (1897-1967) como primeiro presidente do regime militar.
Para o posto de conspirador-mor aponta-se o então embaixador dos EUA no país, Lincoln Gordon (1913-2009), coadjuvado pelo adido militar americano, general Vernon Walters (1917-2002), velho amigo de Castelo e outros militares brasileiros desde a campanha da FEB na Itália durante a Segunda Guerra. O documentário subordina assim à intervenção externa a complexa dinâmica interna que desembocou no golpe.
Assim, de um lado, a fulanização do golpe. Do outro, sua exportação. Os extremos se tocam ao aplainar a formulação cristalina do historiador Marcos Napolitano logo na primeira frase de seu “1964 – História do Regime Militar Brasileiro” (ed. Contexto): “No final de março de 1964, civis e militares se uniram para derrubar o presidente João Goulart, dando um golpe de Estado tramado dentro e fora do país”.
Assim como a não menos precisa argumentação de Daniel Aarão Reis (“Ditadura e Democracia no Brasil”, ed. Zahar): “A irresolução das forças e das lideranças reformistas oferece um contraste notável com a determinação de certos núcleos golpistas. Estudá-las melhor é até os dias de hoje um desafio para que se tenha uma explicação mais convincente e para que seja mais bem compreendida essa ‘estranha derrota’”. Tomara no futuro próximo também novos filmes se mostrem à altura de chamado tão crucial.
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Amir Labaki é diretor-fundador do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários