Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Silêncio de militares não é compatível com a democracia

Uma das principais pesquisadoras da era Vargas e da ditadura militar, a cientista política Maria Celina D’Araújo critica o silêncio das Forças Armadas sobre os crimes da ditadura de 1964.

“É surpreendente que, 50 anos depois do golpe, as Forças Armadas ainda tratem os crimes da ditadura como um segredo de Estado”, diz.

Professora da PUC-Rio, ela é coautora da entrevista histórica em que o presidente Ernesto Geisel (1907-1996) disse que a tortura “em certos casos torna-se necessária para obter confissões”.

Nos 50 anos do golpe, surgem novas revelações sobre práticas da ditadura. Como avalia este momento?

Maria Celina D’Araújo – A Comissão da Verdade está dando um passo importante, embora tardio, ao pegar depoimentos de quem efetivamente prendeu e torturou.

Há um pacto de silêncio, embora alguns militares estejam admitindo certas coisas. É surpreendente que até hoje, 50 anos depois do golpe, as Forças Armadas ainda façam disso um tabu, segredo de Estado. A repressão é um tema em que não aceitam mexer.

Embora alguns oficiais estejam reconhecendo sua atuação, a instituição não faz o mesmo. É um paradoxo. Por que não admitem que, em dado momento da história, também erraram?

Qual é a sua hipótese?

M.C.D’A. – Os militares pensam ter a prerrogativa de construir sua memória. Quando alguém diz “sobre mim, só podem falar o que eu quero”, temos um problema sério. Essa ideia é incompatível com a sociedade democrática.

Hoje as Forças Armadas exercem poder de veto no Brasil, porque têm a capacidade de impedir que informações venham a público. Quando um ator político tem poder de veto, não há democracia.

Como isso ocorre na prática?

M.C.D’A. – Desde a Anistia, historiadores e jornalistas procuram saber o que aconteceu. Os militares escondem documentos, não atendem a ordens de autoridades para apresentá-los. Isso é muito grave.

As Forças Armadas mantêm um espírito de corpo forte. Seria construtivo se elas revissem seu papel, mas o valor que prevalece é “nós salvamos o Brasil do comunismo, então não importam os meios”. É uma visão tacanha da história. Não há espaço para autocrítica.

Como vê o país na comparação com os vizinhos?

M.C.D’A. – Na América do Sul, somos o único país em que ninguém foi responsabilizado individualmente pelos crimes da ditadura. O Estado assumiu a culpa e pronto.

Nossa Anistia foi uma autoanistia, os militares perdoaram a si mesmos. Isso aconteceu em lugares como Chile e Argentina, mas depois as pessoas foram julgadas.

Os últimos governos têm lidado melhor com o tema?

M.C.D’A. – O governo Lula foi um retrocesso muito grande. Veja a demissão do José Viegas do Ministério da Defesa [em 2004]. O general Francisco Albuquerque, comandante do Exército, fez um manifesto defendendo o golpe de 1964 sem consultar o ministro, seu chefe. Era uma dupla irregularidade, porque militar não pode fazer manifestação política e houve quebra da hierarquia, mas Lula demitiu o ministro e manteve o comandante no cargo.

Depois, o Tarso Genro, que era ministro da Justiça, declarou que era favorável a rever a Lei da Anistia para que os militares respondessem por crimes contra a humanidade. O que o Lula disse? “Não se toca mais neste assunto”. Ele tinha uma atitude reverencial com as Forças Armadas.

Houve avanços com Dilma, que foi torturada no regime?

M.C.D’A. – A mudança foi a criação da Comissão da Verdade, mas com limitações, sem poder para investigar e julgar. A Anistia foi referendada pelo STF. Como presidente da República, ela não poderia fazer nada diferente.

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Bernardo Mello Franco, da Folha de S.Paulo