Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Terra em transe

Na noite de 30 de março de 1964, este escriba, então um mancebo de 22 anos, marombava na redação do Correio da Manhã à espera de duas coisas: a prova da primeira página do Segundo Caderno do dia seguinte e uma carona de carro para a zona sul da cidade. Queria lamber a cria de uma reportagem sobre a expansão, na música pop, da expressão “yeah, yeah”. O País imerso na maior crise político-militar e eu, mais por fora do que Fabricio Del Dongo na batalha de Waterloo, plugado no sim, sim de Ray Charles, Beatles e Dionne Warwick, e nos prazeres que me aguardavam num bar do Posto 6.

Antes de deixar a redação, passei os olhos na prova da primeira página do primeiro caderno, a primeirona, “la une”, como dizem os franceses, e deparei com um baita editorial, intitulado “Basta!”. Com uma abertura ciceroniana (“Até que ponto o presidente da República abusará da paciência da Nação?”) e um fecho veemente: “O Brasil já sofreu demasiado com o governo atual. Agora, basta!”. Pensei comigo, “isso vai dar merda”, pressentimento robustecido quando li, na manhã de 1.º de abril, a segunda catilinária do jornal, cujo título dizia tudo: “Fora!”. Àquela altura, os tanques já estavam nas ruas.

Embora fosse o jornal mais influente do País, junto com o Estadão, aqueles dois editoriais não serviram de senha à conspirata civil-militar. O Correio defendera a posse de Jango e o respeito à Constituição três anos antes, era visceralmente legalista, mas julgava, com razão, que ao governo João Goulart faltavam seriedade, autoridade e até base militar, opinião compartilhada por sua equipe de editorialistas, composta, entre outros, pelo trotskista Edmundo Moniz, Otto Maria Carpeaux, Newton Rodrigues, Oswaldo Peralva, Carlos Heitor Cony e José Lino Grünewald.

Atribuídos ao primeiro, de ascendência indiscutível sobre os demais editorialistas, até por ser parente da dona do jornal, Niomar Moniz Sodré, aqueles dois históricos editoriais sempre me pareceram uma obra coletiva. Chegaram a apontar Cony como seu autor, mas a despeito de seu apreço pela reprimenda de Cícero a Catilina (até hoje Cony me saúda assim: “Sergiusque tandem!”, dispensando o “abutere patientia nostra”), ele não poderia sequer ter sugerido a abertura do “Basta!” por estar afastado da redação, convalescendo de uma apendicectomia.

Na época, além de integrar o time de editorialistas, Cony publicava crônicas na primeira página do Segundo Caderno, alternando por algum tempo com Carlos Drummond de Andrade e, na época do golpe, com outro romancista, Octávio de Faria. Naquele espaço, exercitava-se livremente na “arte de falar mal”, na maledicência benigna, movida a ironia, ceticismo e sem parti-pris ideológico. Uma vez por semana dava suas cotações no Conselho de Cinema do jornal, cópia do Conseil des Dix da revista Cahiers du Cinéma, coordenado por este seu criado, obrigado, e do qual Zé Lino também fazia parte. Cony entende um bocado de cinema e até escreveu um livro sobre Chaplin. Antes de entrar na faca, publicou uma série de crônicas sobre outra de suas paixões, Ary Barroso, morto durante o carnaval de 1964.

Oito “moleques”

Se Jango foi a primeira vítima do golpe e cabo Anselmo, seu primeiro vilão, Cony foi seu primeiro herói nacional; ali brigando pela pole position com Sérgio Porto. Na imprensa, sem sombra de dúvida. Livre do resguardo, fez sua rentrée em 7 de abril com uma crônica intitulada “Da salvação da pátria”, em que relatava seu primeiro contato com a soldadesca revolucionária ao sair de casa para uma volta pós-operatória no quarteirão onde morava, em Copacabana. Reconfortante deboche da arrogância e das paranoicas patriotadas dos milicos, essa crônica assinalou o surgimento de um novo Cony, não mais o praticante folgazão da arte de falar mal, mas, a partir do primeiro ato institucional baixado pelo novo governo, em 9 de abril, o implacável ocupante de uma coluna rebatizada O Ato e o Fato.

“O que houve foi um simples golpe de direita para a manutenção de privilégios”, sintetizou Cony. Três dias depois, uma bordoada no “patriotismo estéril” dos revolucionários. Na crônica seguinte lançou a expressão “revolução dos caranguejos” e recebeu sua primeira ameaça de morte. Fanáticos armados, sedentos por vingar o brio e a honra dos militares, cercaram o prédio em que ele morava e suas filhas, de 13 e 9 anos, atormentadas por sucessivos telefonemas obscenos, tiveram de ser levadas para a casa de um amigo.

À fascistoide truculência o Correio reagiu com um enérgico editorial e Cony com esta advertência: “Sou um homem desarmado, não tenho guarda-costas nem medo. Tenho, isso sim, uma obra literária que, bem ou mal, já me dá uma razoável sobrevivência. Esse o meu patrimônio, essa a minha arma. Qualquer violência que praticarem contra mim terá um responsável certo: general Costa e Silva, ministro da Guerra, Rio – e, infelizmente – Brasil”.

A primeira leva das crônicas indignadas de Cony resultou num livro, O Ato e o Fato, lançado em junho pela Civilização Brasileira, com prefácio do editor Enio Silveira, orelhas de Hermano Alves e Mário da Silva Brito, mais apêndices de Carpeaux, Edmundo Moniz e Márcio Moreira Alves. Evaporou nas livrarias em menos de uma semana; e em 12 meses já contabilizava cinco reedições. Multidões superlotavam as noites de autógrafos do cronista, desconhecidos lhe agradeciam, comovidos, pela bravura de suas diatribes e pela ajuda que eventualmente prestara a algum parente preso ou desaparecido.

Cony acabaria preso pela primeira vez em novembro de 1965, por sua participação no episódio dos “Oito do Glória”. Na abertura de uma conferência da Organização dos Estados Americanos no Hotel Glória, do Rio, ele e mais Glauber Rocha, Antonio Callado, Márcio Moreira Alves, o cineasta Joaquim Pedro de Andrade, o diretor de teatro Flávio Rangel, o diretor de fotografia Mário Carneiro e o embaixador Jaime Rodrigues abriram uma faixa denunciando a ditadura recém-instalada, deram uma vaia, e foram presos no ato, além de qualificados de “moleques” pelo jornal O Globo.

Glauber e Callado ficaram na mesma cela de Cony. Quatro dos oito “moleques” aproveitaram a clausura de quase um mês para tocar adiante quatro obras afins e fundamentais para a cultura brasileira: Glauber escrevendo o roteiro de Terra em Transe (em papel de embrulho); Callado terminando Quarup; Cony iniciando Pessach; e Joaquim Pedro tendo o lampejo de Os Inconfidentes. Esses eram os verdadeiros revolucionários. Os verdadeiros moleques estavam no poder.

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Sérgio Augusto é colunista do Estado de S.Paulo