Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Tortura: missão cumprida

Muitos artistas quando se mandaram para o exílio deixaram composições atemporais, como Aquele Abraço (Gilberto Gil), London London (Caetano Veloso) e Samba de Orly (Chico Buarque): “Vai, meu irmão, pega esse avião, você tem razão de correr assim…”.

Outras relatavam o que acontecia por aqui para os que estavam por lá, como O Bêbado e a Equilibrista (João Bosco), que homenageava Clarice Herzog e todas as Marias: “Que sonha com a volta do irmão do Henfil, com tanta gente que partiu, num rabo de foguete. Chora, a nossa Pátria mãe gentil, choram Marias e Clarices, no solo do Brasil…”.

Então veio a Anistia. Veio o hino Tô Voltando (Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós): “Pode ir armando o coreto e preparando aquele feijão preto, eu tô voltando. Põe meia dúzia de Brahma pra gelar, muda a roupa de cama, eu tô voltando…”.

Muita gente que canta estas músicas desconhece a referência. Quando a música é boa pode ser reinterpretada e referendada por cotidianos variados.

Você já deve ter visto: Tô Voltando virou trilha de comercial de cerveja. Mudaram a letra. “Sou a paixão do planeta, a emoção, sou a bola rolando, eu tô voltando. Pode estender a bandeira, arrumar a TV, as cadeiras, eu tô voltando…” A maioria que vê o comercial não tem ideia do que a original representou. A História é consumida e se integra, como titânio no osso.

As redes sociais possibilitaram uma descoberta: a maioria não tem ideia do que se passou há décadas; a maioria reproduz certezas contadas por alguém, viu num vídeo do YouTube, ouviu falar, leu num site de fulano, que tem a fonte segura e informações dos bastidores das verdades absolutas. A verdade é inviolável?

A Lei da Anistia é das poucas que perduram, apesar da Constituição de 1988. Virar a página, é a sua proposta. No entanto, foi questionada pela OAB através da ADPF 153 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) em 2010, é questionada pela OEA (Organização dos Estados Americanos). O “esquecimento” e o “perdão” são revistos em Comissões da Verdade, uma nacional, algumas estaduais e até setoriais, como a da USP.

Ameaçados e presos

O Ministério Público Federal investiga por conta própria e levará para os tribunais alguns casos de antes e depois da Lei, como o atentado ao Riocentro e as torturas cometidas em instalações militares. Levou o coronel reformado Brilhante Ustra, chefe do DOI/Codi-SP, identificado por muitos presos políticos como Dr. Tibiriçá, torturador impiedoso, anistiado.

Mas a Advocacia-Geral da União defende que a Lei da Anistia foi uma conquista democrática. Tese defendida pelo ex-deputado Fernando Gabeira, ele próprio, um anistiado. O STF deu a palavra final e se colocou contra a revisão.

O filósofo Denis Rosenfield, da UFRGS, que escreveu O Que É Democracia?, da mítica coleção Primeiros Passos (Brasiliense), resumiu o pensamento dos contrários: “A Lei da Anistia, negociada entre militares democratas, políticos do establishment e a oposição do MDB, com amplo apoio da sociedade civil, foi assinada por Figueiredo em agosto de 1979, abrindo realmente caminho para a redemocratização do País”.

Abriu sim o caminho para a redemocratização. Mas foi promulgada por representantes de um regime que não tinha alternância no Poder, nem controle civil sobre militares, em que o cidadão não tinha direito amplo de votar e ser eleito, controle das decisões governamentais, direito de se associar livremente.

1. As manifestações e passeatas que pediam Anistia eram reprimidas com violência. De um lado, estudantes, religiosos, ABI, OAB. Do outro, Tropa de Choque de Erasmo Dias, Newton Cruz e todo aparelho repressivo disponível.

2. As entidades da sociedade civil eram ameaçadas. Não tiveram sossego nem mesmo depois da promulgação da lei: um bispo foi sequestrado, a OAB e bancas de jornais sofreram atentado, e o Riocentro, atacado.

3. O Congresso que a aprovou vivia sob um regime bipartidário artificial criado durante a ditadura, que cassou partidos. Tinha muita pressão sobre as decisões do plenário; no dia da votação da emenda Dante de Oliveira, anos depois, o Congresso foi cercado por tropas comandadas pelo general Newton Cruz, num cavalo branco, para intimidar os partidários das eleições diretas.

4. Parte do Congresso foi sendo cassada desde o dia 9 de abril de 1964. Foram ao todo 17 Atos Institucionais e 104 Atos Complementares. Deputados, senadores, ex-presidentes, trabalhadores, militares, até professores, foram impedidos de exercer o direito político.

5. Com o avanço da oposição, o Pacote de Abril, baixado por Geisel, fechou temporariamente o Congresso em 1977 e instituiu a figura do Senador Biônico (interventor não eleito) em 1/3 do Senado.

6. As entidades estudantis, fechadas durante a ditadura, estavam se reconstruindo. Assembleias e passeatas estudantis eram sobrevoadas por helicópteros do Exército. A PUC-SP, que abrigava o congresso de refundação da UNE, foi invadida em setembro de 1977: mais de 3 mil estudantes presos. Estudantes que participassem de política eram expulsos das universidades com base no Decreto 477.

7. Sindicatos que sofreram intervenção na ditadura se reconstruíam. Assembleias sindicais eram sobrevoadas por helicópteros do Exército. Líderes foram ameaçados e presos. As confederações de trabalhadores eram ilegais.

Anistia imposta

Como a Lei da Anistia que perdoou torturadores pode ser considerada democrática, se foi promulgada com parte da oposição no exílio, na prisão, cassada ou silenciada pela tortura?

Se a Lei se mantém firme por 35 anos, com defensores que pertencem aos três Poderes, é sinal de que ao Estado, não apenas às Forças Armadas, não interessa a revisão. A Justiça não é cega coisa nenhuma. A decisão de não revê-la não é técnica, é ideológica e imoral.

Não foi negociada entre militares e democratas, nem teve apoio da totalidade da sociedade civil, que queria outra Anistia. Foi imposta por um ditador. O segundo escalão que torturou foi perdoado pelo Alto Comando. Missão cumprida.

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Marcelo Rubens Paiva é colunista do Estado de S.Paulo