Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A ditadura cronológica

O senso comum pode imaginar que marcos cronológicos são naturais. Contudo, eles são inventados pelos que pensam a história, segundo interesses determinados, embora nem sempre explicitados.

O caso da mais recente ditadura brasileira é ilustrativo.

Os soldados do general Mourão começaram a mover-se na noite de 30 de março de 1964. No dia seguinte, 31, o golpe estava vitorioso. No entanto, os vencidos, exercitando a ironia, não hesitaram em datar a vitória do golpe em 1° de abril, dia da mentira. A versão pegou e está em quase todos os livros didáticos.

Controvérsia mais complexa trava-se a respeito de quando acabou a ditadura. A versão dominante, uma espécie de “pensamento único”, assinala a posse de José Sarney em março de 1985 como o “fim da ditadura”. Caracterizada como “militar”, a ditadura teria terminado seus dias com a posse de um “civil” na Presidência da República.

No entanto, é razoável afirmar que a ditadura acabou quando foram revogados os atos institucionais, no início de 1979. Desapareceram, então, os instrumentos de exceção que configuram as ditaduras, regimes que se baseiam no fato de que os governos fazem e desfazem leis a seu bel prazer, quando e como querem, apenas exercendo a força.

Ora, depois de 1979, deixou de haver um estado de exceção no Brasil. Subsistiu um Estado de Direito autoritário, sem dúvida, marcado pelo chamado “entulho autoritário”, que só seria revogado pela Constituição de 1988. Entre 1979 e 1988, o país conheceu um período de transição –ainda não havia um Estado de Direito democrático, mas já não existia ditadura.

Marco consagrado

Mas por que, então, quase todo o mundo fala em 1985 como o fim da ditadura? A escolha de 1985 é funcional para todos os que desejam ocultar, silenciar ou suprimir as conexões civis da ditadura.

Elas são muito visíveis desde 1964: basta lembrar as Marchas da Família com Deus pela Liberdade e o apoio ostensivo de veneráveis instituições como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), a ABI (Associação Brasileira de Imprensa) e a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) à instauração da ditadura.

Sem contar a participação ativa de quase todos os grandes jornais e de lideranças políticas, empresariais e eclesiásticas. Ao longo do tempo, ainda que sofrendo mutações, e consideráveis, os apoios civis à ditadura permaneceram consistentes, desfazendo-se só pouco a pouco.

Por outro lado, o marco de 1985 também agrada a setores de esquerda que, desde 1964, procuraram caracterizar a ditadura como “militar”, num recurso legítimo de luta política, onde se procurava isolar os milicos no poder. Tratava-se de enfraquecer os adversários, e não propriamente de compreender o processo histórico.

Formou-se, assim, uma ampla e heterogênea “frente”, política e acadêmica, configurando o fim da ditadura em 1985, mesmo que o marco seja de uma inconsistência que salta aos olhos, pois José Sarney, como se sabe, e ele também, foi um líder da ditadura durante o tempo em que ela durou, até 1979.

Devagarinho, camaleonicamente, ele, acompanhado por muitos outros, migrou para as oposições antiditatoriais, depois que a ditadura tinha acabado. A posse de Sarney foi apenas mais uma mudança molecular, entre outras, que levaram a 1988, quando, aí sim, pode-se afirmar que se encerrou a transição que desembocou na restauração democrática no país.

Questionar o consagrado marco de 1985 não é tarefa simples. Envolve não apenas enfrentar uma verdadeira ditadura cronológica, formada por militantes de direita e de esquerda, mas também a força da inércia que se traduz, no pensamento social, pela preguiça intelectual.

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Daniel Aarão Reis, 68, é professor de história na Universidade Federal Fluminense