Ele não foi preso pela ditadura brasileira, não passou pelos porões da tortura nem pegou em armas. Mesmo assim, Jair Krischke teve papel fundamental na militância política: formou uma rede de informantes e pesquisadores que ajudou a esclarecer centenas de desaparecimentos, mortes e sequestros ocorridos entre os anos de 1960 e 1980. A contragosto, tornou-se também um dos símbolos da luta contra as ditaduras do Cone Sul. Há quem o compare até com o alemão Oskar Schindler, que salvou cerca de 1,2 mil judeus do nazismo.
Em 1979, Krischke oficializou juridicamente o Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH) do Rio Grande do Sul, grupo que atuou na clandestinidade durante todo regime militar e que ajudou a salvar 2 mil vidas das garras das ditaduras do continente. Entre os salvos, estavam brasileiros que partiram para o exílio e estrangeiros que passaram pelo Brasil para depois se refugiar na Europa – todos fugindo dos golpes militares de Chile (1973), Uruguai (1973) e Argentina (1976).
Nascido em Porto Alegre em 1938, Krischke guarda mais de 100 caixas de documentos que comprovam não só a participação de militares de Brasil, Argentina, Chile e Uruguai na Operação Condor, como também as atrocidades cometidas na época. Hoje, ao analisar o regime militar brasileiro e sua conexão com as outras ditaduras, afirma que “fomos os grandes difusores do pau-de-arara”, método de tortura que nos países vizinhos ficou conhecido como “periquera” (em referência aos periquitos dos pampas). “O aparelho repressivo brasileiro foi mais seletivo, mas produziu muitas vítimas a partir de torturas bárbaras aplicadas pelo aparato oficial, ligado às polícias e ao Exército. E essas torturas nós exportamos para países vizinhos”, diz Krischke.
Os refugiados de outras ditaduras
Embora não milite em partido algum, Jair Krischke se define como socialista. Em 1961, participou do episódio conhecido como Cadeia da Legalidade, que ajudou a garantir a posse do então vice-presidente, João Goulart, após a renúncia de Jânio Quadros. Na época com 22 anos, Krischke montou um palanque eletrônico num antigo sobrado de Porto Alegre – com duas caixas de som e um microfone – e passou a transmitir discursos de apoio a Jango.
Três anos depois, no dia do golpe, Krischke foi pego de surpresa pela violência da reação às reformas sugeridas por Jango. Como outros personagens daquele período, chegou a acreditar que “as coisas se resolveriam” em um ou dois anos. “As coisas só ficaram realmente dramáticas a partir de 1968, quando houve um golpe dentro do golpe e tivemos que passar a viver com extremo cuidado”, diz ele. “Num primeiro momento, tiramos muitos brasileiros do país e levamos para Argentina ou Uruguai. Depois, a necessidade foi inversa: levar uruguaios, chilenos e argentinos para o exílio na Europa.”
O esquema era arriscado e, obviamente, clandestino. Mas tinha chancela do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Fugitivos do regime, que convergiam de todo o país para o Rio Grande do Sul, se escondiam em casas de amigos, em centros paroquiais, em sindicatos, em entidades comunitárias. Muitas vezes se escondiam em casas de amigos de amigos até terem segurança para um deslocamento terrestre pela vasta fronteira do Rio Grande do Sul com Argentina e Uruguai – a pé, de carro, de ônibus, em viagens fracionadas que podiam durar semanas.
Muitos militantes acabaram “caindo”, no jargão da época – foram interceptados por militares, descobertos em deslocamento ou sumiram entre as fronteiras.
Algumas rotas também foram interrompidas, o que obrigava a abrir pacientemente uma nova forma de fuga. Krischke calcula que 80% dos brasileiros salvos da ditadura fugiram pelo Rio Grande do Sul, principalmente para o Uruguai – graças aos mil quilômetros de fronteira seca praticamente sem vigilância. Uma grande parte dos refugiados depois obteria o status de refugiado concedido pelas Nações Unidas e, com isso, conseguiam asilo em algum país europeu. Depois dos golpes no Uruguai, no Chile e na Argentina, o grupo de Krischke também passou a focar no salvamento de estrangeiros que fugiam das ditaduras do Cone Sul.
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Flavio Ilha, do Globo