Estava eu na sucursal do jornal O Estado de S. Paulo, no Rio, quando chegou a notícia de que o general Mourão Filho, comandante da Quarta Divisão de Infantaria, sediada em Juiz de Fora, havia se sublevado contra o presidente João Goulart. Era o dia 31 de março de 1964.
Imediatamente, entrei em contato com os companheiros do Centro Popular de Cultura (CPC), certo de que devíamos nos reunir naquela noite para ver que atitude tomar. Não demorou muito e juntamente com a direção da UNE (União Nacional dos Estudantes), decidiu-se convocar os artistas e intelectuais para encontrarmos um modo de resistir à tentativa de golpe.
Nem fui para casa jantar. Fui direto para a sede da UNE, que ficava na praia do Flamengo. Não demorou muito e o auditório estava repleto de estudantes, artistas e intelectuais de esquerda. Um representante da UNE abriu a reunião, condenando o golpe militar e convocando todos a resistirem à derrubada do governo.
Lá para as dez horas da noite, subiram ao palco três representante do Comando Geral dos Trabalhadores Intelectuais (CGTI), que traziam informações importantes. Em nome deles, falou Nelson Werneck Sodré, afirmando que não ia haver golpe uma vez que o general Mourão estava isolado. Garantiu que o presidente João Goulart contava com o apoio das três forças armadas.
Ouvimos aquilo com certa surpresa, mas também com alívio. Foi então que eu e Armando Costa fomos até uma lanchonete, no Largo da Carioca, comer alguma coisa e, lá chegando, ouvimos no rádio a notícia de que o general Amaury Kruel, comandante do Segundo Exército, sediado em São Paulo, aderira ao golpe. Preocupados, voltamos para a UNE, onde já havia chegado a notícia.
Não demorou muito, fomos surpreendidos por tiros disparados contra a entrada da UNE. Houve um momento de pânico, particularmente depois de sabermos que os tiros foram disparados de dentro de uma caminhonete e que atingiram dois colegas nossos, que estavam na porta do prédio. Um deles teve que ser levado ao hospital. Em face disso, pedimos a proteção do brigadeiro Teixeira, comandante da Terceira Zona Aérea, que apoiava o governo. Ele mandou dois soldados para nos dar proteção.
O que restava era a luta clandestina
Já era madrugada quando decidimos que alguns de nós fossem para casa dormir e voltassem, no dia seguinte, para render os que ficassem. Thereza e eu fomos para casa, mesmo porque havia crianças nos esperando. Mas, de fato, quase não dormimos, tal era a preocupação com a situação do governo e as consequências de um regime militar para o país e para cada um de nós. Ao acordarmos, a televisão informou que os militares rebeldes haviam tomado o Forte de Copacabana.
Comemos alguma coisa e tomamos o carro para voltar à UNE. Ao nos aproximarmos, percebemos que alguma coisa estranha estava acontecendo ali. Seguimos em frente até a Cinelândia. Toda a praça estava ocupada com tanques de guerra e soldados com farda de campanha. Não havia o quer fazer ali e voltamos pela praia do Flamengo, em direção à UNE. Ao nos aproximarmos de lá, o tráfego estava engarrafado, quase não andava. Logo depois, percebemos por que: um grupo, armado com pistolas e coquetéis molotov atacava a sede da UNE. Consegui ver que alguns de nossos companheiros fugiam por trás do prédio, correndo pelos telhados dos edifícios vizinhos.
Meu carro parou exatamente em frente à UNE e os caras passavam junto dele, para jogar as bombas incendiárias contra o edifício. Meu temor era que algum deles percebesse que, dentro daquele carro, estava o presidente do CPC. Respirei aliviado quando os veículos começaram a se mover e pude me afastar dali.
Na noite daquele dia, realizou-se uma reunião com Marcos Jaimovich, assistente do PCB junto ao CPC. O golpe estava consumado, Jango deixara Brasília e fora para Porto Alegre, onde Brizola tentava resistir com o apoio do Terceiro Exército. Não alimentávamos esperanças. A discussão não deu grandes resultados, mesmo porque era impossível prever o que vinha pela frente. Por isso mesmo, pedi ao Marcos que comunicasse à direção do PCB que, a partir daquele momento, eu me considerava membro do partido. É que, com o fim do CPC, o que nos restava era a luta clandestina contra a ditadura que nascia.
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Ferreira Gullar é colunista da Folha de S.Paulo