Pergunta: “Quantas pessoas o senhor matou?”
Coronel reformado Paulo Malhães: “Tantas quantas foram necessárias.”
P: “Arrepende-se de alguma morte?”
Malhães: “Não.”
P: “Quantos torturou?”
Malhães: “Difícil dizer, mas foram muitos.”
Criticada pela timidez das investigações, acusada de produzir mais barulho do que resultados, a Comissão Nacional da Verdade redimiu-se, ao menos em parte, ao entrevistar Malhães, torturador assumido e participante ativo da ditadura instalada no Brasil em 1964. O depoimento aconteceu no dia 25 de março passado. O militar já tinha oferecido uma avant-première aos jornais “O Dia” e “O Globo”. Na comissão, recuou quanto à sua participação no desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva, assassinado pela ditadura em 1971. Sem convencer, é claro.
O depoimento de Malhães serve como resumo essencial para todos aqueles que não viveram aquele período e agora, 50 anos depois, são bombardeados por análises, balanços e comentários diversos sobre uma época infamante da história brasileira. O grosso do palavrório busca passar a ideia de que havia, em 1964, duas visões golpistas em queda de braço –e a turma do fuzil venceu.
Tudo mentira. A resistência quase inexistente aos soldados de Mourão Filho não atesta um suposto apoio popular aos militares; prova que não havia nenhum esquema alternativo da parte do governo constitucional. Mal ou bem, as manifestações de insatisfação popular e as promessas reformistas de Jango procuravam trilhar o caminho da lei. Que diabo de golpista era este que propõe que o Congresso vote um estado de sítio e depois volta atrás?
É normal?
Por mais não fosse, Jango estava longe de ser um revolucionário. Assim como o Partido Comunista Brasileiro, stalinista até a medula, não passava de simulacro do grupo que dirigiu a Revolução Russa de 1917. A tal agitação nos quartéis, comprovou-se, vinha de provocadores infiltrados –maiores informações com o cabo Anselmo.
É preciso muito papel, tinta e Gbytes para tentar esconder as digitais do imperialismo americano –isso mesmo, imperialismo até hoje– na sequência de quarteladas e ditaduras espetadas na América Latina. Por razões sobretudo econômicas –o tal livre mercado, naquela época, funcionava desta maneira (o general Amaury Kruel que o diga). Para subjugar a periferia, “Brother Sam” contou com a adesão, em diferentes graus, de elites locais, das quais era o verdadeiro senhor. A esse respeito, “O Dia que Durou 21 Anos”, filme de Camilo Tavares, funciona como uma operação de catarata para quem procura fatos em vez de versões edulcoradas.
Vamos e venhamos, soam patéticas as tentativas de encontrar o “lado bom” de um período que deveria ser lembrado para não ser repetido. No fundo, no fundo, não se diferenciam do coro que creditou a Pinochet o “milagre chileno”. Os “Chicago Boys”, apelido dos economistas pendurados na ditadura andina, só faltavam dizer: “Morreu um pessoal, mas são os ossos do ofício”. Detalhe: tanto Jango quanto Salvador Allende haviam sido eleitos dentro das regras do jogo vigente. O malabarismo revisionista é tamanho que os dois, seguidores da letra da lei, viraram os golpistas e os golpistas, os legalistas!
Um Malhães nessas horas dá um banho de realidade. Ao descrever como se livrar de vítimas durante a ditadura brasileira, exibiu a frieza de um cozinheiro especialista em desossar animais. “Naquela época não existia DNA […] Quebrava os dentes. As mãos, cortava daqui pra cima.”
Muita gente que apoiou os golpistas hoje ensaia um mea-culpa. Ninguém está isento de errar. Reconhecer o erro é direito legítimo, ainda mais se for para melhorar. Agora resta descobrir se há sinceridade na penitência. O próprio Malhães dá uma chance para medir a autenticidade da turma arrependida. Basta responder à pergunta: é normal uma situação em que, depois de tal depoimento, o sujeito vá para casa livre, leve e solto?
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Ricardo Melo é colunista da Folha de S.Paulo