“Para que democracia/ quando a barriga está vazia?” O velho sucesso da UNE (União Nacional dos Estudantes) nos idos de 64 foi cantado, com humor, por seu antigo presidente, José Serra, 72. Ele participava, anteontem, de debate sobre os 50 anos do golpe militar, no Instituto Fernando Henrique Cardoso.
O descompromisso com a democracia era comum à esquerda e à direita, concordaram os dois outros participantes da mesa, o cientista político Bolívar Lamounier, 70, e o historiador Boris Fausto, 83.
Relendo a literatura política da época, Lamounier assinalou que a própria palavra “democracia” estava praticamente ausente das intervenções da esquerda, enquanto o tema do desenvolvimento econômico era também ignorado pela direita.
O jogo da radicalização política era vazio, observou José Serra. A ideia era assustar o adversário, numa tática em que se esperava que este entregasse os anéis para ficar com os dedos. Tanto assim, que ninguém sabia com clareza no que consistiriam as “reformas de base”. “Se você juntasse três pessoas na rua, logo surgiria uma outra reforma de base qualquer”, disse Lamounier.
Enquanto isso, João Goulart assinava um decreto desapropriando as terras às margens das rodovias federais. Por que “às margens das rodovias federais”?, perguntou Serra. Na época, disseram-lhe apenas que a ideia seria eficaz “politicamente”.
Casos de tortura
Como explicar que um presidente como João Goulart apostasse numa tática de radicalização crescente? Para Serra, o único motivo seria o de que Jango esperava, de fato, ser deposto, confiando numa volta ao estilo de Getúlio Vargas depois de 1945.
As elites, de esquerda e de direita, “arrastaram o país” para uma situação alheia aos sentimentos moderados da maioria da população, concluiu Boris Fausto.
Tanta explicitude não duraria muito tempo, em todo caso. Em debate realizado na USP, sobre cinema e música durante a ditadura, os pesquisadores Eduardo Morettin e Marcos Napolitano assinalaram as ambiguidades de um lado e de outro.
A “pedagogia democrática” exercida pela canção popular na década de 1970 nunca teve, diz Napolitano, o aspecto da “canção de barricada” comum em outros países latino-americanos. Em vez de “hinos revolucionários”, optou-se por uma mistura entre lirismo e mensagem cifrada.
No campo oposto, tampouco vingaram as tentativas mais explícitas de dirigismo cultural no cinema, notou Eduardo Morettin. O plano do ministro da Educação e Cultura do governo Médici, Jarbas Passarinho, era financiar filmes históricos que exaltassem grandes figuras nacionais, como o Duque de Caxias e Santos Dumont. Apesar do sucesso de Independência ou Morte, filme de Carlos Coimbra com Tarcísio Meira, a maior parte desses projetos não foi adiante. A Embrafilme terminou financiando desde pornochanchadas como Ainda Agarro Esta Vizinha até produções depois censuradas, como São Bernardo, de Leon Hirszman.
Tais ambiguidades não indicam, de todo modo, que a ditadura brasileira tivesse sido suave ou suportável. O ponto foi destacado com eloquência pelo filósofo Vladimir Safatle, em outra mesa-redonda na USP, dentro do mesmo ciclo de debates.
Ele se insurgia contra o que chamou de “negacionismo histórico” – a tendência atual de se minimizar a violência da ditadura.
Durante o governo Médici, era possível até mesmo comprar textos de Marx nas bancas de jornais, disse Safatle referindo-se à coleção Os Pensadores da Editora Abril. O problema é que, embora formalmente legal, a venda ou a posse de um livro de Marx poderia ser motivo de prisão. O arbítrio, e não a letra da lei, decidia o que era permitido ou não.
A herança de uma “falsa legalidade” se manifesta até hoje, prosseguiu Safatle, num país que é o único da América do Sul em que o número de casos de tortura aumentou, e não diminuiu, com o fim do autoritarismo.
A “ironia” do mea culpa da Globo
Vivemos, em todo caso, um “tempo de verdade”, disse outra participante da mesa, a advogada Rosa Cardoso, membro da Comissão Nacional da Verdade.
Afirmou estar surpresa com o destaque dado pela imprensa aos relatos sobre tortura motivados pela Comissão, considerando positivo o mea culpa das Organizações Globo a respeito de seu apoio ao regime militar. Mais radical, Safatle viu o caso como “ironia”, denunciando a ausência de atitude semelhante por parte das Forças Armadas e de grupos empresariais.
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Marcelo Coelho é colunista da Folha de S.Paulo