O cheiro do golpe era cada vez mais forte. A grande imprensa rosnava contra a ameaça comunista em editoriais cada vez mais agressivos, alguns a pregar, sem rodeios, a derrubada do governo de João Goulart. A pregação que inicialmente era quase uma exclusividade do vociferante Carlos Lacerda, na Tribuna da Imprensa, agora, nos últimos dias de março, alastrava-se pelas páginas de quase todos os jornais e se estendia para o rádio e a TV.
Sobrava a Última Hora de Samuel Wainer, que havia dez anos começara a circular com o objetivo declarado de apoiar o governo de Getúlio Vargas, contra o qual estavam unidos, como estariam contra João Goulart dez anos depois, em 1964, os grandes jornais e os grandes empresários, principalmente os que, como se dizia então, comandavam os grandes trustes estrangeiros.
O golpe que estava para chegar começara a ser engendrado naqueles dias de 1954. Mas Getúlio deu fim à vida e o projeto foi sendo adiado e, depois de algumas tentativas frustradas, chegou com toda a força.
Censura furiosa
Os últimos dias de março de 1964 ferviam nos palácios, nos escritórios do empresariado, nas sedes das entidades que operavam como defensoras da democracia, nos quarteis e nas ruas.
Foi no dia 19, em São Paulo, que pude sentir de perto o cheiro mais forte do golpe que se avizinhava. Eu trabalhava na sucursal da revista O Cruzeiro, a mais importante da época, e fui para a rua em missão profissional. Vi-me de repente no meio da rua Barão de Itapetininga, então um dos pontos elegantes da cidade, engolfado pela multidão que marchava desde a praça da República. Senhoras de fino trato agitavam rosários e gritavam contra o comunismo. Tinham a seu lado gente pobre, até “gente de cor”, que repetia os slogans um tanto desajeitadamente. Eram empregadas domésticas convidadas a marchar por suas patroas. Havia também operários e empregados do comércio.
A grande marcha – Marcha da Família com Deus pela Liberdade –, que segundo disseram os jornais do dia seguinte reunira 500 mil pessoas, resultara de minuciosa preparação por entidades que reuniam mulheres, principalmente, financiadas por organizações anticomunistas, por sua vez financiadas pelo empresariado local e pelos trustes estrangeiros. Muito dessa história seria contado depois, mas ali, na confusão das calçadas, já se ouviam as versões de pequenos grupos que chamavam a manifestação de fascista, “a soldo do capital estrangeiro”.
Deu para sentir que ali, entre a multidão marchante, tecia-se o ninho do ovo da serpente. A marcha tinha o apoio do governador do Estado, Ademar de Barros e, além de empresários, políticos, também marchadores. Um deputado proporcionou cena de avant-première de um filme do horror que estava por vir: da janela de um edifício de escritórios da rua Barão de Itapetininga alguém jogou um balde de água nos manifestantes. O deputado tomou-se de fúria investigativa e, escoltado por policiais, interditou o prédio, vasculhou andar por andar, sala por sala, até descobrir numa delas o parapeito de uma janela molhado. Não teve dúvidas: despachou o dono do escritório e o único funcionário presente para o Dops.
Enquanto isso, a marcha prosseguia. Era uma resposta ao comício realizado dias antes no Rio de Janeiro, durante o qual o presidente da República, João Goulart, assinara espantosos decretos que incluíam expropriações de terras, tabelamento de aluguéis de imóveis e, suprema ousadia, a encampação de refinarias de petróleo.
Era demais para os manifestantes, que seguiram até a Praça da Sé, onde, entre outros, ouviram o discurso do líder integralista Plínio Salgado, contra os comunistas que “querem destruir a família e a segurança da pátria”.
A marcha foi de grande impacto para mim. Eu nunca vira manifestação tão grande em minha ainda curta carreira de repórter. Mas o impacto maior eu sentiria dias depois, quando a revista circulou: praticamente nada do que eu e outros colegas havíamos escrito, segundo os critérios da chamada “objetividade”, foi publicado. A matéria era um vasto editorial de louvação à manifestação, em tom grandiloquente.
Senti, pela primeira vez, a dor da censura. Mas era apenas a censura dos donos da revista. Que não era diferente da que faziam os donos de outras publicações que apoiavam abertamente o golpe. Pouco tempo depois viria, furiosa, a censura do golpe militar vitorioso. Tão furiosa que até alguns senhores da mídia reclamaram. Mas era tarde.
Fim de linha
O golpe mudaria radicalmente a minha vida. Passei dez anos tentando, do jeito que podia, driblar a censura. Caprichei nas entrelinhas, e disso cheguei a me orgulhar até perceber, melancolicamente, que estava praticando a autocensura. Mas tentei, por outros meios, participar da resistência à ditadura. Foi aí que se deu o fato mais importante dessa luta: um movimento pela retomada do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, desde 1964 dominado por diretorias no mínimo alienadas em relação à violência da ditadura, foi me buscar na redação da revista Realidade para integrar, como candidato à presidência, a chapa de oposição. Relutei, mas terminei aceitando, consciente de que a luta que tinha pela frente não era apenas sindical. Era, principalmente, política.
Em outubro de 1975, a ultradireita militar, que se opunha a qualquer abertura política, desencadeou uma onda de repressão contra os jornalistas, sob o pretexto de que os comunistas estavam mandando nas redações. No dia 25, depois de mais de uma dezena de prisões de jornalistas, Vladimir Herzog, então diretor de Jornalismo da TV Cultura, apresentou-se no DOI-Codi, um centro de tortura montado pelo II Exército. Ali ele seria assassinado horas depois.
A morte foi denunciada pelo sindicato. O desdobramento do episódio levou a mudanças que culminariam, anos depois, na queda da ditadura militar. O resto dessa história é amplamente conhecido.
Quanto mim, foi praticamente ali que encerrei a minha carreira de repórter. Não havia mais lugar para mim das redações.
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Audálio Dantas é jornalista, foi presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo e deputado federal pelo MDB