“O esquecimento, e eu diria mesmo o erro histórico, é um fator essencial na criação de uma nação –e, por isso, o progresso dos estudos históricos representa um perigo para a nacionalidade.” O nacionalista Ernest Renan queria que, em nome da unidade francesa, os cidadãos de seu país esquecessem as matanças do Midi, no século 13, e o massacre de protestantes da noite de São Bartolomeu, em 1572. Nosso problema é o oposto: são as revisões políticas de 1964, expressas nas simétricas (e patéticas) Marcha da Família e Marcha Antifascista, que representam perigo –não para a nacionalidade, mas para a convivência democrática.
O golpe de 1964 não nos salvou da “ameaça comunista”, que inexistia, nem foi urdido por um “fascismo” puramente imaginário. Os militares não estavam sós. Ulysses Guimarães os apoiou. Depois, com justiça, virou herói da resistência. Todos os grandes jornais, exceto o “Última Hora”, também os apoiaram. O célebre editorial “Basta!”, de 31 de março de 1964, marcou a virada golpista do “Correio da Manhã”. Foi escrito por jornalistas de esquerda: Edmundo Moniz (exilado em 1968), Osvaldo Peralva (preso em 1968), Newton Rodrigues, Otto Maria Carpeaux e Carlos Heitor Cony (preso em 1965 e 1968, tornou-se beneficiário de uma gorda “bolsa anistia”). Na mesma linha estavam Alberto Dines e Antônio Callado. “Fascismo”, sério mesmo?
A “ditabranda” (Folha dixit!) converteu-se em ditadura dura em 1968. O AI-5 teve 17 signatários, entre os quais Delfim Netto, que se tornaria um dileto conselheiro de Lula. Depois dele, o “Estadão” virou herói da resistência –com justiça, e ao contrário daFolha e de “O Globo”. Ninguém, porém, na grande imprensa, veiculou elogios tão rasgados ao general Médici e à Operação Bandeirante, o aparelho subterrâneo de tortura, como a “Veja” dirigida por Mino Carta com pulso de ferro (seu lugar-tenente dixit!), em editoriais e reportagens publicados na hora mais sombria (curiosos podem consultar, entre outras, as edições de 4/2/1970 e de 1/4/1970 no arquivo digital da revista). Viva a memória, abaixo a caça às bruxas.
Ato ecumênico
Nem “fascismo”, nem “neoliberalismo”. A efêmera etapa liberal de Roberto Campos deu lugar ao neonacionalismo militar de Médici e Geisel, aplaudido de pé por um alto empresariado que amava as estatais (como ainda ama) e adorava girar em torno da luz do poder (como ainda adora). Rupturas, mas também continuidades: pouco antes do primeiro triunfo eleitoral, Lula prometeu restaurar o “planejamento de longo prazo” do regime militar. Você prefere a memória ou o esquecimento?
Caçadas de bruxas: jovens saíram às ruas para insultar idosos militares reformados, alegadamente ligados às torturas. Os torturadores não eram “maçãs podres”, mas peças de uma engrenagem comandada pela cúpula do regime e financiada por respeitados empresários. Promulgada pelo último general-presidente, a Lei de Anistia paralisa a ação dos tribunais, protegendo a máquina inteira de repressão política da ditadura. Em troca da impunidade, ofereceram as “bolsas anistia”, tanto as justas quanto as escandalosas. De Sarney a Dilma, todos os governos civis aceitaram o intercâmbio vergonhoso.
Comissão da Verdade, pá de cal. Sem justiça, proibida pela lei, temos um simulacro de memória esculpido segundo as conveniências do presente –e os teatros de máscaras dos marchadores que seguem um crucifixo ou aquela chata canção do Vandré. Criança ainda, no aeroporto, eu vi os cartazes sinistros com as fotos dos “terroristas procurados” –um deles, o pai de um colega de escola. Adolescente, permaneci estático, como os demais, nas escadarias da Catedral da Sé, após o ato ecumênico em memória de Vladimir Herzog, aguardando o chamado a uma passeata que nunca veio. Minha geração tinha direito a coisa melhor que as encenações em curso do nosso “punto final”.
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Demétrio Magnoli é colunista da Folha de S.Paulo