Presidente da Câmara no governo do general Ernesto Geisel, o jurista Célio Borja sustenta que as Forças Armadas se anteciparam, em 1964, a um golpe que seria dado pela esquerda com aval do presidente João Goulart.
Ele contesta o termo ditadura militar. “O que havia era um regime de plenos poderes. Não era ditadura”, diz.
Após a redemocratização, Borja foi ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) e da Justiça, no governo Fernando Collor. Aos 85 anos, ainda advoga e mantém escritório em Copacabana, no Rio.
O golpe militar faz 50 anos. Qual foi o principal motivo da queda de Jango?
Célio Borja – Havia um bruto desassossego. O principal erro do governo foram as ameaças. O presidente era mais cauteloso, mas no 13 de março [o comício da Central] soltou a franga. Ameaçavam fechar o Congresso, fazer reformas na marra. O que queriam era a implementação, no Brasil, de um regime parecido com o de Cuba.
A tese de que a esquerda preparava um golpe é controversa. O sr. acreditava nisso?
C.B. – Estou convencido até hoje. Havia uma enorme articulação de movimentos concertados que visavam à invasão de propriedade. Isso contaminou toda a sociedade.
O que achava de Jango?
C.B. – Era um pobre homem. Quando muito, um aprendiz de caudilho, despreparado para governar o país.
Ao apoiar o golpe, o sr. imaginou que ele poderia resultar em 21 anos de ditadura?
C.B. – Supunha que seria uma intervenção cirúrgica. Pensei que os chefes militares de formação democrática, Castello à frente, encurtariam a permanência no poder.
Como descreve a ditadura, do ponto de vista jurídico?
C.B. – Ditadura é a concentração de todos os poderes em mãos do chefe de Estado. Nenhum presidente militar teve isso. O Congresso e o Judiciário eram independentes. Ditadura, nunca houve. O que se podia dizer é que havia um regime de plenos poderes. Não era ditadura.
Se não era ditadura, por que cassaram parlamentares e até ministros do STF?
C.B. – Roosevelt também quis enfrentar a Suprema Corte dos EUA porque a considerava hostil ao “New Deal”. Aumentar o número de ministros do STF [de 11 para 15] era tolerável, até porque começava a haver o problema do acúmulo de processos. Inadmissível foi a cassação de três ministros [Evandro Lins e Silva, Vitor Nunes Leal e Hermes Lima, em 1969].
O AI-5 suspendeu todas as liberdades democráticas.
C.B. – A sublevação de organizações de esquerda criou um clima que justificava, para alguns, uma carapaça militar sobre o governo civil. O AI-5 foi um desastre. Havia a Constituição de 1967 e um recomeço da vida constitucional. Mataram isso.
Neste momento, muitos civis se afastaram do regime. O sr. se elegeu deputado e foi líder do governo. Por quê?
C.B. – A reconvocação do Congresso abriu esperanças de normalização. Era um posto a partir do qual se podia lutar pela redemocratização. Nosso dever era lutar por dentro [do regime]. Foi o que fiz.
O sr. sabia das torturas?
C.B. – Sabia que havia brutalidades. Sempre houve no Brasil. O pau de arara não foi invenção de 64. Ninguém se importava com a miséria do preso comum. Chamou a atenção quando os presos políticos foram submetidos ao mesmo tratamento. O regime estava descambando para a selvageria. Quando virei líder do governo, me tornei uma estuário de queixas.
O que fazia com elas?
C.B. – Levava a informação de que fulano foi torturado e o Golbery [do Couto e Silva] a transmitia ao [João] Figueiredo, que transferia o militar. Faltava força aos superiores para coibir os abusos. Acho que agiam à revelia [dos superiores]. Às vezes havia conivência. Achavam que tinha que ser assim. Senão, não ganhavam a guerra.
Como vê o debate sobre Anistia e Comissão da Verdade?
C.B. – A Anistia é um instrumento de pacificação. Ninguém é tolo o bastante de acreditar que seria possível pacificar o país sem o esquecimento dos crimes praticados de um lado ou de outro. A Comissão da Verdade é o oposto. O que a Anistia fez, ela desfaz.
O que acha da visão que se tem hoje do regime?
C.B. – Absolutamente distorcida. Sempre se diz que a história é escrita pelos vencedores. Aqui, os vencidos estão escrevendo a seu gosto com um objetivo político: desqualificar quem não lutou contra a famosa ditadura, que não foi ditadura nenhuma.
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Bernardo Mello Franco, da Folha de S.Paulo