Lembramos cinquenta anos do golpe de Estado que inaugurou a mais longa ditadura da história do Brasil. Entre suas consequências negativas está a interrupção da rica conversa que o país travou com si mesmo em sua primeira – e breve – experiência democrática, entre 1946 e 1964.
O Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945) foi encerrado por um golpe militar, mas as Forças Armadas não tomaram o poder. O presidente do Supremo Tribunal Federal assumiu a chefia do governo por três meses e organizou a eleição para a escolha de seu sucessor. Líderes civis criaram diversos partidos políticos, como o Social Democrático (PSD), trabalhista (PTB) e a União Democrática Nacional (UDN) e promulgaram a Constituição mais aberta e progressista que o país tivera até então, incorporando os direitos sociais de Vargas e as liberdades civis e políticas que ele havia eliminado.
O Brasil ainda estava em transição para uma sociedade industrial. Às vésperas do golpe de 1964, 55% da população vivia na zona rural e cerca de 40% eram analfabetos – e não tinham direito ao voto, pelas leis da época. Apenas 1% da população tinha estudado em universidades. As mulheres tinham em média 6,3 filhos, cuja expectativa de vida era de 55 anos.
Os sindicatos dependiam do Estado, mas a relação não era de submissão automática, havia espaço para lutas e contestações que com frequência resultavam na melhoria de salários e condições de vida. A economia crescia a bom ritmo, mas a inflação preocupava e virou problema particularmente sério após a construção de Brasília, pelos impactos das obras da nova capital nas contas públicas.
Intervenções militares foram constantes na política da época. A eleição de 1945 foi disputada por dois oficiais, o general Eurico Dutra e o brigadeiro Eduardo Gomes. As Forças Armadas pressionaram Vargas a deixar a presidência em 1954, na crise que culminou no seu suicídio. Houve o “golpe preventivo” do marechal Henrique Lott para garantir a posse de Juscelino Kubitschek, que enfrentou duas rebeliões militares durante seu governo. Setores das Forças Armadas opuseram-se à posse de João Goulart na Presidência, após a inesperada renúncia de Jânio Quadros. Mas a posição legalista do III Exército no Rio Grande do Sul frustrou esse intuito e levou à solução – precária e provisória – do parlamentarismo. A política militar da época foi marcada ainda pelo movimento dos praças (soldados, cabos, sargentos) com sua mistura de pleitos trabalhistas de melhor tratamento na carreira a reivindicações como exercer mandatos parlamentares.
A República de 1946 viveu à sombra da Guerra Fria, então no auge: revoluções comunistas na China e em Cuba, guerras na Coreia e Vietnã, crises em Berlim. A polarização ideológica do período gerou um ambiente que dificultava as reformas sociais, com frequência consideradas por seus adversários como favorecendo os comunistas ou manipuladas por eles. O Partido Comunista Brasileiro (PCB)tinha líderes de expressão como Luís Carlos Prestes, Gregório Bezerra e Carlos Marighella, mas tinha sido declarado ilegal em 1947. Na clandestinidade, tinha alguma influência nos meios sindicais, estudantis, artísticos e intelectuais. O PCB era próximo a Goulart e pleiteava seu retorno à legalidade.
Os golpes ou tentativas de 1954, 1955, 1961 e 1964 foram contra Vargas e seus herdeiros. O cenário foi particularmente intenso com Goulart por sua determinação em levar a agenda da Revolução de 1930 para o campo, com a extensão de direitos sociais e econômicos, a proposta de voto aos analfabetos e a perspectiva de uma reforma agrária feita em meio à mobilização de baixo para cima, das Ligas Camponesas.
Do ponto de vista cultural e intelectual, foram décadas de grande criatividade, com a eclosão de bossas e cinemas novos, a publicação de clássicos sobre a formação brasileira por Antônio Candido, Celso Furtado e Raymundo Faoro, a criação do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, o desenvolvimento do método de alfabetização de Paulo Freire, a vitalidade do Teatro Brasileiro de Comédia e do Arena de Augusto Boal.
As elites conservadoras brasileiras queriam uma democracia restrita e tutelada, mas o sentido da evolução política da República de 1946 foi desafiar esses limites. Goulart afirmou em seu discurso no célebre comício da Central:“O que eles querem é uma democracia de povo emudecido, amordaçado nos seus anseios e sufocado nas suas reinvindicações. A democracia que eles desejam impingir-nos é a democracia antipovo, do anti-sindicato, da anti-reforma, ou seja, aquela que melhor atende aos interesses dos grupos a que eles servem ou representam.”
O golpe de 1964 e a longa ditadura que se seguiram não foram apenas contra Goulart, mas um freio à herança pluralista e inquieta da primeira experiência democrática brasileira. Foi um republicídio.
O Brasil atual é muito diferente daquele de Vargas, JK, Goulart. É urbano (84%), os analfabetos (8,7% da população) votam, as mulheres têm poucos filhos (1,9) cuja expectativa de vida é 74 anos. O país é novamente uma democracia multipartidária, cujos maiores partidos (PMDB, PT, PSDB) surgiram da oposição ao regime autoritário. Há muito menos mobilização e efervescência do que nas décadas de 1950-60, ceticismo e baixa confiança nas instituições.
Contudo, suas realizações sociais são notáveis, como a estabilidade. Pela primeira vez a democracia durou tanto em nós para permitir que uma geração nascesse e chegasse à vida adulta em liberdade. O controle da inflação, queda da pobreza, ampliação da classe média e diminuição da desigualdade, que só agora retornou ao que era em 1964, antes da concentração de renda da ditadura. É um símbolo poderoso para o fechamento de um ciclo demasiado longo. O cineasta Camilo Tavares batizou seu filme sobre o golpe de “o dia que durou 21 anos“. Talvez ele ainda não tenha acabado, como provam as 80 comissões da verdade que investigam as violações de direitos humanos do regime autoritário, e os esforços para acabar com a impunidade de seus crimes.
Conversemos, sempre.
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Maurício Santoro é assessor de direitos humanos da Anistia Internacional