O atual transe de rememoração do golpe de 1964, com seus contornos de resgate histórico, catarse, disputa pela memória coletiva, e, por último, mas não menos evidente, ajuste de contas, é compreensível, embora não necessariamente claro. Talvez a dimensão simbólica da marca de 50 anos, talvez os efeitos não previstos da nossa transição para a democracia – e do papel nela desempenhado pela Lei de Anistia –, mas certamente também o atual momento político e ideológico, tudo parece contribuir para polarizar, e até mobilizar as mais diferentes tribos em torno do 31 de março (ou 1º de abril). Até certa Direita, que há pouco tempo questionava-se se ainda existia, resolveu dar as caras e se assumir.
Em meio ao processo, gostaria de chamar a atenção para a insuficiência do foco praticamente restrito das reportagens e análises ao que me parece ser apenas a ponta desse iceberg: o esclarecimento final do enredo macabro das terríveis violações de direitos humanos pelo aparato repressivo do Estado, à época, e sua confrontação com a luta armada.
Enredo opressivo
Sem menosprezar a urgência dessa tarefa, considero igualmente imperioso se desvelar – em especial para as novas gerações – o que era o cotidiano brasileiro sob a “Redentora”, vivido pela esmagadora maioria, mais ou menos silenciosa, que talvez nem tivesse uma posição tão clara e consistente em relação ao regime, mas que também sofreu com as violências e indignidades da rotina de vida sob uma ditadura. Lembrar o medo de viver sob um Estado policialesco, ambiente ideal não somente à institucionalização do abuso e da tortura, mas também à proliferação dos alcaguetes. Lembrar os livros queimados às pressas, por medo do index ou de mal-entendidos trágicos. Da autocensura nos lares, nas escolas e universidades – e o temor paranoico dos provocadores e infiltrados. Da repressão obscurantista da atividade artística. Das “caças às bruxas”, listas negras, odiosas perseguições corporativas e profissionais, com base em delações covardes, pelos motivos mais torpes e mesquinhos. Da censura ostensiva da imprensa: mão na roda para os corruptos e apaniguados pelo status quo hipócrita, que escapavam assim da denúncia e da investigação jornalística. Da Justiça manietada, dos sindicatos expurgados e vigiados, do Poder Legislativo violentado por cassações e arbitrariedades sucessivas.
Seria bom, pois, recuperar a experiência daqueles muitos que não se posicionavam tão franca ou decididamente diante dos militares, e talvez até tenham apreciado certos aspectos econômicos ou obras da ditadura – e mesmo os que (supremo pecado!) se esbaldaram com a epopeia da seleção tricampeã de 70 –, e não obstante só podiam mesmo desprezar o regime. Os que o suportaram por longos anos – em sentidos diferentes do verbo –, e talvez muito discretamente. Mas até sentindo frequentemente, como diria Ulysses Guimarães, verdadeiro nojo da ditadura. Assim talvez a busca por um maior esclarecimento sobre o período corra também menos riscos de ser confundida, ou diluída, ad nauseam, em juízos morais estéreis e anacrônicos – com as lentes inevitavelmente ignorantes e problemáticas de hoje – sobre as opções e indecisões dos atores históricos, no passado. Ainda mais quando o que mais importa é entender: por que tudo aconteceu, e tal como aconteceu? Como fomos aprisionados naquele enredo opressivo? Teria sido possível evitar? Pode se repetir algo do gênero? Como essa enorme ferida se abriu e por que ela não vai fechar tão facilmente?
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Fernando Lattman-Weltman é cientista político e professor do Cpdoc/FGV