Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Do Glória à glória

Conforme ia dizendo na coluna passada, em novembro de 1965, pelo protesto que fizeram diante do hotel Glória na abertura de uma conferência da OEA no Rio, oito pesos-pesados da intelectualidade brasileira foram levados para o quartel do 1º Exército na Barão de Mesquita, o mesmo onde, seis anos depois, Rubens Paiva seria torturado até a morte. Os “oito do Glória”, como ficaram conhecidos, ou “octeto do Glória”, como Glauber Rocha, um dos oito, os apelidou, não sofreram maus-tratos. Embora incomunicáveis, podiam receber mimos dos familiares. Marie, mulher do jornalista Marcio Moreira Alves, jamais deixou faltar um queijinho francês na dieta prisional do marido.

Um manifesto pela libertação do grupo correu as redações, ensejando a imediata inclusão dos signatários nos prontuários do Dops. Foi minha estreia na categoria “subversivo”, pecha de que só tomaria conhecimento sete anos e dois outros “delitos” depois. Reforçado por adesões estrangeiras, o manifesto abreviou o séjour carcerário do octeto, que, a despeito de sua curta duração, resultaria na clausura mais produtiva de nossa história cultural desde o confinamento de Graciliano Ramos no presídio da Ilha Grande, matéria-prima de Memórias do Cárcere.

No cativeiro da Barão de Mesquita nasceram ou tomaram forma, simultaneamente, três das obras mais expressivas dos primeiros anos da ditadura. Dividindo a mesma cela com Carlos Heitor Cony e Glauber Rocha, Callado tocou os últimos capítulos do romance Quarup; Cony escreveu os primeiros de Pessach: A Travessia; e Glauber adiantou os diálogos de Terra em Transe. Aquela cela merecia ser tombada pelo patrimônio histórico.

No romance de Cony e no filme de Glauber, o (anti)herói se chama Paulo: Simões no primeiro, Martins no segundo, ambos jornalistas em crise existencial, arrastados para uma aventura revolucionária tão incoercível quanto a que a leva o ex-padre Nando de Quarup a trocar seu nome para Levindo e virar guerrilheiro (ou “cangaceiro”, como Callado preferiu defini-lo). A notoriedade de Paulo Francis e a forte amizade que o unia a Callado e Glauber não nos autorizam a considerá-lo uma provável inspiração para qualquer um dos dois Paulos.

Paulo Simões é um alter ego idealizado de Cony, que com o personagem compartilha até a data de nascimento, 14 de março de 1926. Essa é a primeira pista. A última é o prefácio escrito por Paulo para uma tradução de A Vida dos Doze Césares. Cony também prefaciou Suetônio. O único jornalista oficialmente reconhecido como modelo para o torturado Paulo Martins, o Hamlet gauche de Terra em Transe, é o jornalista Jânio de Freitas, que se envolveu mais do que Francis no combate à ditadura militar; não a ponto de se ligar de corpo e alma à luta armada, é verdade, mas nem ele nem Glauber me explicaram o quanto Paulo Martins e Jânio tinham em comum. Há tempos alguém tentou enfiar nessa fechadura outra chave: o poeta e jornalista Mário Faustino. É de Faustino o longo e agônico poema que abre, fecha e dá sentido a Terra em Transe, mas ele morreu dois anos antes do golpe militar.

“Eu também não entendi nada”

Como qualquer sacerdote que se deixe seduzir por uma mulher, o défroqué de Quarup nos remete de estalo ao padre Amaro queirosiano. Sua Amélia chama-se Francisca e por ela, ao contrário do padre Amaro, Nando abandona a batina. Despindo-se também de outros preconceitos e temores, entrega-se conscientemente ao evangelho da mudança social e política. Franklin de Oliveira o considerava uma hipóstase do autor (“ou a soma dos melhores homens” de sua geração), com o que talvez concordem todos os que privaram daquele ser humano exemplar que foi Callado.

Quarup foi sua obra mais ambiciosa, uma summa do Brasil latifundiário, “um painel do trogloditismo nacional”, ainda nas palavras de Franklin de Oliveira, o primeiro, aliás, a colocá-la no mesmo patamar de Doutor Fausto, de Thomas Mann, e não apenas por ambas possuírem uma estrutura musical. Callado omitiu o interregno carcerário, no rodapé do último capítulo: “Rio, Petrópolis, Fazenda de Santa Luisa (Março de 1965-Setembro de 1966)”. Orgulhava-se de ter sido preso pela ditadura, mas não a admitia cúmplice de seu processo criativo.

Por sua ostensiva crítica a setores radicais da esquerda e ao Partido Comunista, terreno minado prudentemente evitado por Callado, o romance de Cony atraiu inimigos dentro e fora de sua própria editora, Civilização Brasileira, mas não, diga-se, do dono da casa, Ênio Silveira. Para o pessoal do Partidão, com forte presença na editora, não era hora de se questionar a pureza ideológica e a lisura estratégica dos que lutavam contra a ditadura. Pessach trouxe para a ficção um questionamento que já de algum tempo atormentava não só Cony, mas outros intelectuais da chamada esquerda independente.

Enfronhado nos bastidores da Civilização, Francis (pensava ter sido Otto Maria Carpeaux) alertou Cony: “Cuidado que este livro vai te sepultar.” Não sepultou, mas o caixão chegou a ser encomendado. Lançado sem o alarde esperado, em 1967, trazia uma orelha não de todo favorável de Leandro Konder, misteriosamente substituída, na década seguinte, por outra, encomiástica e assinada por Francis.

Terra em Transe enfrentou inimigos mais explícitos, a censura o principal deles. As esquerdas se dividiram. Uns gostaram, outros acharam-no confuso e alegórico demais para entendimento das massas. Chegou ao Festival de Cannes contrabandeado na bagagem do ator José Lewgoy e lá foi mais bem recepcionado do que aqui.

Tão logo liberado pela censura, com Glauber (outro nascido em 14 de março) já na Europa, Terra em Transe motivou um concorridíssimo debate no Museu da Imagem e do Som do Rio, por mim moderado a pedido de Ricardo Cravo Albin, que então dirigia o MIS. Na mesa, Alex Viany, Luiz Carlos Barreto, Mauricio Gomes Leite, Alberto Salvá, Ronald Monteiro e Fernando Gabeira (que não gostara do filme), e o moderador que vos fala, que gostara, mas não podia expor sua opinião. Na primeira fila do minúsculo auditório, o carnavalesco Clóvis Bornay, figurante do filme, que ao apagar das luzes pediu a palavra e confessou: “Eu também não entendi nada”, provocando risos no resto da plateia.

Foi graças a esse debate, malvisto pelas autoridades, que ganhei minha segunda ficha no Dops. Prometo não falar da terceira no próxima coluna.

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Sérgio Augusto é colunista do Estado de S.Paulo