Quem se interessa pelo processo de construção dos conglomerados de mídia no Brasil tem conhecimento do quanto o regime ditatorial militar (apoiado por setores civis da sociedade) instituído no país em 1964 favoreceu a construção das Organizações Globo. Em agosto de 2013, um editorial do jornal O Globo assumiu haver sido um “erro” apoiar a ditadura. No entanto, a maior empresa de comunicação brasileira – e uma das maiores do mundo – não deixa de revelar, mesmo “nas entrelinhas”, que a ditadura “é irrelevante porque o Brasil deu a volta por cima”. Na semana retrasada, no programa Conexão Roberto D’Ávila, a Globo deixou isso claro através das palavras do economista e ex-ministro dos governos militares Delfim Netto.
A despeito da dor e da revolta dos descendentes de milhares de vítimas do regime de tortura e de assassinatos levado a cabo pelos militares brasileiros a partir do golpe de Estado desferido em1964 em nome da “segurança nacional,” – e também de parte do povo brasileiro que defende os regimes democráticos – a Rede Globo de Televisão, através da Globo News, no programa Conexão Roberto D’Ávila, revelou que Costa e Silva era um democrata, pois pretendia realizar uma Constituinte e promulgá-la no dia 7 de setembro, mas as circunstâncias o impediram de fazê-lo.
Conforme Delfim, o economista beneficiado pelos governos militares e por setores civis de direita após o processo de redemocratização, o golpe de 1964 “foi um movimento da sociedade” e nós [brasileiras e brasileiros] “fomos beneficiados por um trabalho muito bom”, citando como exemplo o nome de Roberto Campos [ministro de Planejamento da administração do general Castelo Branco].
Ordem social dominante
Delfim Netto afirmou, também, haver perguntado ao ex-presidente Médici – o general que instituiu o AI-5, cuja administração fora conhecida como “anos de chumbo”, dada a dureza ainda mais efetiva do regime – se havia tortura e que ouviu não como resposta, negando, portanto, os inúmeros atos violentos de tortura que vitimaram pessoas que não coadunavam e manifestavam seu desacordo com o regime. Orlandi (2001) diz que, ao produzir discurso, o sujeito não apenas está transmitindo informações, mas também efeitos de sentidos entre os locutores, através dos quais se faz a mediação entre o ser humano e sua realidade. Por isso, conforme assinala a autora, o que se diz se encobre de ideologia, fator constituinte do sujeito, porque o que se diz não resulta somente da intenção de informar ao outro, mas da relação de sentidos estabelecida pelos sujeitos em um contexto social e histórico.
Ao acompanhar a entrevista, o telespectador desprovido de ferramentas que agucem as sua criticidade pode ter sido levado a concordar com as afirmações e argumentações do economista e, consequentemente, descriminalizar o golpe de 1964, aceitando as “justificativas” que colocam o evento e o regime como “necessários” para o bem do Brasil.
Na referida entrevista, ficou evidente o caráter revisionista do discurso de Delfim Netto, posto que em nenhum momento o entrevistador Roberto D’Ávila contestou as afirmações do economista e ex-ministro, dando a entender que ele – e consequentemente a emissora Globo – concordam com as argumentações do entrevistado, o que reafirma o seu apoio ao golpe deflagrado em 1964.
Conforme Fiorin (2000), no processo de enunciação, o qual ele classifica como um “jogo”, “quem enuncia se utiliza de um conjunto de procedimentos linguísticos e lógicos para convencer” (p. 52). Nesta perspectiva, usando como “porta-voz” o economista Delfim Netto, a emissora afirmou, entre outras questões, que “havia uma desarrumação real” no governo do presidente João Goulart, justificando, assim, a necessidade do golpe de Estado.
É importante que os sujeitos estejam alertas em relação à capacidade que têm os meios de comunicação para utilizar dispositivos discursivos que nem sempre são aparentes à primeira vista, mas que podem funcionar de maneira eficiente para afirmar e ou reafirmar certas convicções e, neste mesmo cenário, buscar a assimilação, por parte dos receptores, de ideias, de concepções que, de forma direta ou indireta, sejam responsáveis por garantir a funcionalidade de certos sistemas simbólicos. Estes que, conforme Bourdieu (2007), cumprem a função de integradores sociais, a fim de garantir o consenso no que se refere à ordem social dominante. As Organizações Globo, principalmente através da Rede Globo de Televisão, apresentam uma grande eficiência neste sentido.
Referências
Bourdieu, P. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2007.
Fiorin, J. L Elementos de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2000.
Orlandi, E. P.: Análise do discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2001.
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Verbena Córdula Almeida é doutora em História e Comunicação no Mundo Contemporâneo pela Universidad Complutense de Madrid, Espanha, e professora Adjunta do Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Ilhéus, BA