Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Cony relembra o golpe de 1964

Carlos Heitor Cony se lembra bem daquele 1º de abril de 1964. Seu amigo e vizinho, o poeta Carlos Drummond de Andrade, chamou-o para assistir à tomada do Forte de Copacabana pelas tropas golpistas. Cony quase recusou o convite, porque caía uma chuva fina. Quando desceu de seu prédio, encontrou o poeta com um guarda-sol para protegê-los. Ao se aproximar do local, os dois assistiram a uma cena que marcou Cony com indignação: um militar chutava um operário caído no chão. No dia seguinte, a crônica do autor no “Correio da Manhã” foi uma das únicas vozes contra o golpe militar – em meio à empolgação de imprensa, Igreja e empresariado –, e ela se repetiria muitas vezes. Esses registros da indignação de Cony durante o ano de 1964 estão reunidos no livro “O ato e o fato”, relançado agora, na estreia do escritor em sua nova editora, a Nova Fronteira.

– O que eu vi era uma cena urbana. O oficial chutava o operário que tinha gritado “Viva Brizola!” e estava caído no chão. Depois, o mesmo oficial deu um tiro para o ar. Nunca tinha visto ninguém chutar uma pessoa caída e fiquei chocado – recorda Cony. – Quando cheguei em casa, havia um pedido do jornal para que eu escrevesse uma crônica sobre o golpe, que repercutiu muito.

O hoje imortal da Academia Brasileira de Letras publicou 59 crônicas sobre o regime militar ao longo daquele ano – parte delas foi publicada em livro no próprio ano de 1964. Nelas, ele criticava as prisões e cassações de políticos e a suspensão de liberdades democráticas. No mesmo ano, revoltou-se contra os atos institucionais 1 e 2. Como conta o amigo Luis Fernando Verissimo no prefácio da obra, a pergunta “Já leu o Cony hoje?” se tornou comum entre os opositores do regime. Era, diz o autor, a senha dos que queriam combater os militares.

Preso seis vezes no regime militar

Cony não tardou a sofrer as consequências. No dia 14 de abril de 1964, depois de chamar o golpe de “revolução dos caranguejos” – porque fazia, segundo ele, o Brasil andar para trás –, Cony começou a receber telefonemas ameaçadores. Quatro homens tentaram até invadir sua casa, o que fez o “Correio da Manhã” publicar editorial em seu apoio. O escritor nunca havia apoiado o governo de João Goulart, tampouco participava de qualquer militância política. Mesmo assim, foi preso seis vezes ao longo da ditadura.

– Até hoje eu trato de política com algum constrangimento, porque acho que não é assunto para mim. Mas ali não era uma oposição política, era uma oposição contra a injustiça, era a indignação pelas listas de cassados e presos – diz Cony. – Alguém até escreveu, certa vez: “Foi uma ira santa que moveu o ex-seminarista”. E era mesmo a ira bona, ira boa, da qual falava São Tomás de Aquino.

O escritor lembra que não entrou no “mérito” do golpe, mas na sua forma, ou seja, o modo violento como ele foi conduzido. E ele vê até hoje efeitos do regime militar na sociedade brasileira.

– O Brasil de hoje é uma herança conspurcada de 1964, ainda que a turma que engrossou o golpe esteja mais ou menos quieta. Mas tudo o que vemos em termos de corrupção é herança daquele ano. Também uma certa violência que passou para a sociedade. A sociedade hoje é muito violenta – afirma Cony.

O escritor só teme, ao contrário dos que acreditam na consolidação da democracia no Brasil, uma nova virada autoritária. Talvez não volte do mesmo modo, diz ele, ou comandada pelos mesmos setores de 1964. Mas ele acredita que essa possibilidade existe.

– A história é feita de avanços e recuos – diz.

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Maurício Meireles, do Globo