Quando cheguei em São Paulo, com pai, mãe e irmão, tinha 12 anos e a cidade 1 milhão e meio de habitantes. Vínhamos de um país ferido por uma longa guerra que a certa altura se tornara civil, ao cabo de uma ditadura de 21 anos. Tínhamos passado por bombardeios e até batalhas entre os guerrilheiros da resistência e os soldados nazistas e fascistas. Meu irmão Luis e eu assistimos à prisão do nosso pai, Giannino, em abril de 1944, e ficamos marcados para sempre pela coragem com que havia enfrentado seis esbirros mussolinianos, enchapelados, e de fuzis em riste.
A guerra foi uma experiência decisiva, nos ensinou a encarar as vicissitudes da vida com tranquilidade, sem contar que naquele período li muito e alguns autores me impressionaram fortemente. Dickens, Sterne, Swift, Svevo, bem como Shaw, Pirandello, Tchecov, dos quais li várias peças. Mestres da ironia, cada qual a seu modo. Quando a Segunda Guerra Mundial acabou, meu pai temia a eclosão da terceira e, embora chamado a dirigir o principal jornal de Gênova, minha cidade de nascimento, Il Secolo XIX, preferiu mudar-se para o Brasil, que víamos como o país do futuro sem alimentar a mais pálida dúvida a respeito.
Enxergávamos bem. O País justificava plenamente a retórica daquele tempo. A casa-grande e a senzala estavam ainda de pé, mas os dons que o Brasil recebera da natureza, incontáveis, faziam dele o candidato inescapável a paraíso terrestre. Se quiserem, a grande potência. Em política o populismo dominava e a imprensa servia ao poder, mas havia jornalistas que lidavam brilhantemente com o vernáculo e pensadores habilitados a profetizar um país contemporâneo do mundo. A sociedade era provinciana e se deleitava com colunas sociais, havia, porém, escritores, arquitetos, escultores, pintores de notável qualidade. São Paulo era uma cidade pacata que começava a erguer o maior parque industrial da América Latina. Até as marchinhas de carnaval eram pequenas obras-primas de humor.
O País pretendia ser uma democracia racial de fato inexistente, sofríamos a aridez de um Nordeste submetido a feudatários chamados coronéis. Problemas e mazelas não faltavam. Mesmo assim, esperanças de redenção e correções de rota pareciam perfeitamente acessíveis. No Brasil estudei e tive filhos e netos, levei vida de cidadão correto e de praticante do jornalismo honesto, aquele que não se arvora a objetivo, mas registra a verdade factual.
Último refúgio
Como jornalista, tive a ventura de me encontrar no lugar certo na hora certa diversas vezes, de sorte a ser diretor de redações desde os 26 anos de idade. Depois de sair da revista Veja em fevereiro de 1976, e comigo também se foi a censura imposta pela ditadura desde 1970, tive de inventar os empregos que a chamada grande imprensa jamais ofereceria a um profissional tido, além de subversivo, perigosamente encrenqueiro.
Em relação aos patrões, só não me indispus com a família Mesquita, que me tratou com o respeito e o carinho antes reservados a meu pai, falecido em 1964. Rompi com todos os demais, pretendiam usar a publicação que dirigia em proveito exclusivo dos seus interesses em lugar daqueles dos leitores. Até com Domingo Alzugaray, ex-caríssimo amigo.
A partir de maio de 1976, fundei IstoÉ e o Jornal da República, fracasso retumbante. Dirigi a Senhor da Editora Três, voltei à direção de IstoÉ. Enfim, CartaCapital, a remar contracorrente faz 20 anos. No período, tive dois programas de televisão cassados, um por Armando Falcão, outro por Antonio Carlos Magalhães já em tempos da chamada redemocratização. Ao fim de uma existência dedicada ao jornalismo, sempre a favor da liberdade e da igualdade, tenho de sofrer o ataque desvairado, velhaco e hipócrita de alguns perfeitos representantes da mídia nativa, que inventa, deturpa, omite e mente. Em vez do jornalismo honesto, pratica a desonestidade, simplesmente.
Pergunto aos meus desalentados botões: por quê? Respondem sem hesitações: porque o Brasil não cumpriu a promessa de 67 anos atrás. De inúmeros pontos de vista, é muito mais primitivo e atrasado do que então. Porque em muitos sentidos, não houve redenção. Porque somos o quarto país mais desigual do mundo. Porque os serviços próprios do Estado, educação, saúde, transporte público, são de péssima qualidade. Porque 40% do território nacional não é alcançado pelo saneamento básico. Porque a Justiça não existe no País que vê, sem indignação, José Genoino na prisão e Daniel Dantas às soltas.
Vou adiante. Porque não há um marco regulatório para coibir os crimes que a mídia nativa diariamente comete ao sabor de um português de arrabalde. Porque tudo vale e não há limites para coisa alguma. Porque, segundo o último Pisa, os estudantes brasileiros de 15 e 16 anos sequer conseguem raciocinar: pergunto-me que será do Brasil quando estes adolescentes estiverem com o dobro da idade. Porque a larga maioria vive ainda no limbo, na mais abissal ignorância, impedida de atingir a consciência da cidadania. Porque os privilegiados reagem, se for o caso com extrema violência, à mais remota ameaça de mudança. E leem colunas sociais. Porque 55 mil brasileiros anualmente morrem assassinados, mais do que os tombados da guerra civil na Síria.
E por aí afora, quantos, infindáveis porquês. Sim, o globo terráqueo emburrece progressivamente. O Brasil, contudo, bate recordes. Uma das provas surge, imperiosa, ao comparar um dos nossos jornalões com os grandes diários da Europa e dos Estados Unidos, editados e publicados em países democráticos e civilizados onde enredo igual a este a me envolver não seria possível. Ocorre que o senhor Demétrio Magnoli, o mais recente entre meus caluniadores, confia na ignorância dos seus leitores, filha da falta de estudo e de memória gerais.
Carrego uma história escritacom todas as letras e basta percorrê-la com isenção para saber quem fui como jornalista. O senhor Magnoli louva o progresso tecnológico porque permite trazer à tona o que escrevi no passado. Concordo: ora, viva, vasculhem à vontade, reconstituam este meu passado de fio a pavio, a despeito do risco de revelarem seu próprio pendor masoquista. Não solicito honestidade, equilíbrio, inteligência, nada além da reprodução fiel. Como se deu com o texto assinado M.C. ao celebrar o sexto aniversário do golpe de 1964, escrito debaixo dos olhos do censor de farda. Quem viveu comigo aquele momento e conservou a boa-fé, quem me conhece e à forma da minha escrita, sabe que se trata de uma manifestação de pura ironia. Lê-se, lá pelas tantas, “pátria amada”, e desde quando escrevo a palavra pátria sem lembrar a definição de Samuel Johnson, “a pátria é o último refúgio dos canalhas”? E tanto mais amada… Talvez, um bom lugar para abrigar o senhor Magnoli e os demais do seu naipe.
Tempo precioso
Raymundo Faoro, amigo fraterno e companheiro de algumas aventuras, recomendava: “Não exagere em ironias, eles acham que você fala sério”. Eles, os privilegiados rudes e ignaros. Digamos, os Magnolis e quem acredita neles, e quem os divulga. Tenho uma história, e não há como apagá-la. Não é que a rapaziada não tenha se esforçado para sujar, mesmo com seu português capenga, passagens da minha vida de jornalista, segundo eles sempre na bissetriz do poder. Deve ser por causa disso que Ernesto Geisel me detestava, ou que abri espaço em Veja para uma coluna semanal de Plínio Marcos quando Armando Falcão proibiu sua peçaAbajur Lilás, ou que dei emprego a Luis Weis, quando saiu da Cultura e da equipe comandada por Vlado Herzog no começo de outubro de 1975. Deve ser por isso que o então cardeal de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, me chamou para participar da tentativa de salvar Herzog da tortura e da morte.
Na IstoÉ mantive a oposição ferrenha à ditadura. Na Senhor fomos contra Sarney e Collor, sem trégua. A nova IstoÉ foi decisiva para derrubar o caçador de marajás. Na CartaCapital, com apego à verdade factual, apontamos os incríveis deslizes e mazelas do governo de Fernando Henrique Cardoso. Sim, a Senhor apoiou a candidatura de Orestes Quércia ao governo de São Paulo em 1986, como afirma o senhor Magnoli em tom de denúncia. É fácil explicar por quê. Manda o jornalismo honesto, comumente praticado em países democráticos e civilizados, que um órgão de imprensa se defina em relação às candidaturas do próximo pleito.Senhor respeitava o PMDB de Ulysses Guimarães, e Quércia era o indicado do partido, na nossa opinião melhor que Antonio Ermirio de Moraes, infinitamente melhor que Paulo Maluf, os outros dois principais candidatos.
Nunca me filiei a partido algum, embora minha visão do mundo e da vida me aproxime politicamente de Antonio Gramsci e Enrico Berlinguer, horribile dictu. Sou amigo de Lula, e me orgulha sê-lo, há 37 anos, e ainda em 1977 vaticinava sua inevitável ascensão.CartaCapital o apoiou em 2002 e em 2006, e Dilma em 2010, por considerá-los os melhores candidatos. Dizer, como o senhor Magnoli, que somos lulodilmistas seria como se algum afoito escriba americano definisse obamistas as publicações que apoiaram o atual presidente dos EUA.
Aos meus leitores peço perdão por ter-me alongado nos editoriais da semana passada e desta. Parece-me, agora, ter desperdiçado tempo precioso ao responder a um pessoal disposto a caluniar não somente a mim, mas também às redações que dirigi, e incapaz de responder à pergunta central: por que eu? E tem mais: já que o senhor Magnoli escreve para um jornal que durante a ditadura fornecia à repressão as suas peruas, para transportar, em lugar de jornais, brasileiros destinados à masmorra, surpreende-me crítica tão feroz a um texto dotado de todos os requisitos para agradá-lo. Claro, refiro-me a alguém que não conhece a ironia. Anoto, de passagem, que em certa ocasião fui carregado em uma perua da Oban, primeiro até a sede da PF no bairro de Higienópolis, depois ao próprio QG do II Exército. Talvez o veículo pertencesse à frota da Folha de S.Paulo.
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Mino Carta é diretor de Redação da CartaCapital