A imprensa vem cumprindo um papel adicional pouco destacado: com o rebaixamento do ensino médio e secundário, vem proporcionando educação periódica nas bancas.
Aventuras na História: para viajar no tempo, da Editora Abril, é bom exemplo de tal função complementar que jornais e revistas podem ter. A revista mensal completou um ano neste agosto. Naturalmente, a capa deste número já estava prevista há dez mil anos! Getúlio Vargas, o estadista suicida, está na capa, charuto à boca, mão gordinha, misterioso como sempre. A polêmica já começa na capa: ‘o que levou o homem mais amado do país ao suicídio há exatos 50 anos?’
Mais amado, ma non troppo. Não por todos. Não houve e nem poderia haver unanimidade sobre a figura do misto de estadista e ditador que ainda hoje desconcerta seus críticos, como deixou perplexos também os seus amigos, aliados e desafetos. E o número de aniversário da revista, editada em São Paulo, o Estado onde estão ainda acantonadas as maiores levas de seus inimigos e inimigos de sua memória (ninguém esquece a Revolução Constitucionalista de 1932), coincide com o lançamento do filme Olga, eficiente transposição para as telas da notável biografia que lhe dedicou o jornalista Fernando Morais.
Eis dois exemplos do que a imprensa pode fazer em favor do desmemoriado povo brasileiro: editar uma revista que faça a memória nacional brotar, e escrever livros que conciliem a pesquisa, a reportagem e o estilo bem cuidado. Quando os livros de Fernando Morais são comentados, com freqüência é omitida informação imprescindível: ele escreve bem! Não apenas no sentido de ter o que dizer e saber como fazê-lo, mas com diligente apreço por nossa língua portuguesa. De passagem, reconheçamos que tal cuidado com as normas cultas não é norma na imprensa.
O editor Celso Miranda festeja o aniversário e conta detalhe de bastidor que dá idéia de como o que é bem feito custa muito trabalho: a capa foi mudada à última hora. Ao substituir a foto retocada por um flagrante obtido dias antes do suicídio, deu-nos um Getúlio Vargas realmente documental também na imagem. Como se sabe, a boa revista há de conciliar imagem e palavra. Não fora assim, cairia no paradoxo da televisão: para que televisão de alta definição? Para assistir a programas que envergonham a qualquer um que tenha um pouquinho de pouco pudor? Não me refiro às habituais obsessões da censura, mas ao evidente rebaixamento da qualidade perpetrado em nome da liberdade de expressão! Se não censura, tudo pode? Deveríamos seguir o exemplo da publicidade e seu eficiente Conar.
A matéria de capa, sem embargo de outros textos igualmente apreciáveis, soube conciliar pesquisa e narrativa apoiada na História com um projeto que é uma verdadeira direção de arte, a cargo de Débora Bianchi, a partir de fotos de Ricardo Fasanello, Renan Cepeda, Ricardo Chaves e Oscar Cabral, com ilustrações de Jegueboy. A pesquisa foi entregue ao escritor Lira Neto.
A revista dá uma aula sobre Getúlio Vargas. A essas alturas, provavelmente vários professores já levaram um exemplar para a escola e estão indicando como bibliografia complementar a colegas e alunos.
Como sempre há o que aprofundar, entretanto, algumas questões poderiam ir mais adiante, com mais atrevimento. Por exemplo, esta, que não quer calar: por que um jornalista tinha direito a manter um major da Aeronáutica como segurança? Foi a morte desse segurança altamente qualificado, o major-aviador Rubem Florentino Vaz (sempre lembrado como Rubens Vaz), que deflagrou o drama todo, no célebre atentado da rua Tonelero. A revista grafa erradamente no plural, mas caiu numa armadilha. Não existe uma rua Toneleros. A rua Tonelero relembra episódio da Marinha brasileira na guerra contra o ditador argentino Juan Manuel Rosas, ocorrido a 17 de dezembro de 1851. Quem teria atirado, Alcino José do Nascimento, voltou à cena do tiroteio este ano e negou que tivesse assassinado o major. O militar levou um tiro que não foi dado por Alcino.
Do atentado que causou o suicídio do presidente, sobressai o amadorismo dos pistoleiros brasileiros. Climério Euribes de Almeida, da guarda pessoal comandada por Gregório Fortunato, fugiu do local do crime no táxi de Nelson Raimundo Lopes, que tinha ponto pertinho do Palácio do Catete. Quanto amadorismo!
Que o que se queria era apenas afastar Getúlio Vargas do poder é fácil concluir, mas uma evidência adicional paira sobre todas as outras: dia 24 de setembro, apenas um mês depois do suicídio, estava encerrado o inquérito policial. Naquela vez os pobres venceram. Por mais dez anos! Em 1964 viria o troco das elites, que deflagraria e consolidaria um projeto que começava a liquidação das conquistas dos trabalhadores.
Na guerra das palavras, um Partido dito dos Trabalhadores, nascido de dissenções de Partidos ditos Trabalhistas, chegaria ao poder no alvorecer do próximo século – este – e para surpresa de muitos daria seqüência ao desmantelamento de um Estado que se põe como árbitro nos conflitos entre capital e trabalho.
Mas esta é outra História!’
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Escritor