Pelos males terríveis da autocensura, muito disseminada atualmente nas redações brasileiras, pode-se medir o mal ainda maior da censura oficial. Uma vez eliminados os direitos e as garantias individuais próprias dos regimes democráticos, o Estado começa por simplesmente vetar o que não lhe agrada no material da imprensa. Se não encontra resistência, se a reação é débil, ou, ainda, se a truculência do poder discricionário elimina as resistências, o passo seguinte é consagrar a meia-verdade, muito mais eficiente do que o veto pura e simples, absoluto (como ainda persiste em Cuba, por exemplo).
Sem o anteparo da decência e da dignidade, a malícia cria o cinismo e daí o censor se torna o alterego do jornalista. Sente-se no direito não só de controlar tudo que sai, mas também de manipular o que pode ser publicado. A realidade passa a depender da vontade do Torquemada.
Nos meus arquivos encontrei dois exemplares das ordens que a censura enviava aos órgãos da imprensa em Belém. O índex vinha pronto de Brasília. Em 1974, no documento número 1, a Polícia Federal em Belém se limitava a xerocopiar a listagem dos vetos e simplesmente repassá-la à imprensa. Um ano depois, já sem a preocupação de esconder a origem das ordens, o rol era novamente datilografado e posto num ofício regularmente caracterizado.
Percebia-se uma razão de Estado em certas proibições, de natureza ideológica e política. Mas não em várias delas, empenhadas em impedir referências a atos de corrupção e interferir nos hábitos e costumes da população. O anátema originado de Brasília acabaria servindo para informar os jornalistas situados fora do círculo concêntrico do poder. Algumas vezes eles eram proibidos de fazer referência sobre assuntos que simplesmente ignoravam. O enunciado da proibição passava a ser a única coisa que ficavam conhecendo.
Quem, hoje, ler esses dois documentos dificilmente se deixará convencer de que esse é um método aceitável de corrigir as distorções do processo político. A anomalia segue uma tal espiral que logo a eventual boa intenção na origem terá resultado num monstro sem controle. É essa a trajetória de sempre das ditaduras, mesmo quando começam como um regime de profilaxia. Acabam se especializando numa das mais maléficas atividades humanas: o corte de cabeças.
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Notícias proibidas em 1974:
1. AÇÕES desenvolvidas pelos órgãos de Segurança, para prevenir e reprimir ATIVIDADES c/Segurança Nacional.
2. PRISÃO, morte, atentado, declaração, manifesto, viagem ou informação relativa a SUBVERSIVOS, CASSADOS, BANIDOS ou ASILADOS.
3. INFORMAÇÕES e manifestações s/atuação de: DOM HÉLDER CÂMARA, Padre José Comblin, Padre Francisco Jentel. E qualquer tipo de manifestação dos Bispos da CNBB, quando significar ataque ao Governo.
4. MANIFESTAÇÕES realizadas no EXTERIOR c/o Brasil, a exemplo do que ocorreu na Bélgica.
5. Notícias sobre TORTURAS de presos, GREVES de fome e instalações carcerárias (ref. presos políticos).
6. ATIVIDADES referentes a TERORISMO e SUBVERSÃO, principalmente quando houver citação a JUSTIÇAMENTO de agentes de Órgãos de Segurança.
7. QUALQUER tipo de notícias s/SEQÜESTROS (mesmo de crianças), a não ser quando por autorização expressa do DPF [Departamento de Polícia Federal].
8. ESTOURO de aparelhos e resistência armada.
9. TRAMITAÇÃO de ‘AUTOS’ contra subversivos e terroristas, em qualquer fase de inquérito ou processo. E, em especial, publicação de nomes de autoridades civis e militares, encarregadas de investigação, IPM ou Conselho de Justiça.
10. CRÍTICA direta e indireta s/atuação do SISTEMA DE CENSURA e atuação dos CENSORES, em qualquer setor de trabalho.
11. TRANSAÇÕES realizadas pelo governo do DISTRITO FEDERAL concernente a troca de terrenos da SHIS por aptos. da ENCOL.
12. NOTÍCIAS ALARMISTAS sobre derrame de cédulas falsas.
13. DECISÃO da Censura de proibir a peça Calabar [de Chico Buarque de Holanda e Ruy Guerra], o disco e o filme do mesmo nome, seja matéria paga, crítica ou comentário ou ainda, qualquer tipo de divulgação.
14. ESPECULAÇÃO alarmista e sensacionalista s/condições de vida e trabalho nas regiões NORTE e NORDESTE e a exploração negativa s/situação dos índios brasileiros e atuação da FUNAI.
15. EXPLORAÇÃO sensacionalista focalizando menores abandonados.
16. NOTÍCIAS alarmistas e provocativas s/ atuação das polícias CIVIL e MILITAR, desacreditando a organização policial.
17. CRÍTICAS contestatórias ao regime, governo e aos órgãos de segurança.
18. TRATAMENTO ‘jocoso, ofensivo, desrespeitoso, debochado’ às autoridades constituídas e aos símbolos da Pátria.
19. NOTÍCIAS sensacionalistas com o emprego de palavras CHULAS, ou exploração de escândalos s/aberrações SEXUAIS, temas pornográficos, eróticos, bem como fotografias obscenas.
20. EXPLORAÇÃO de crimes, cenas escabrosas, acidentes, calamidades, exibindo fotos de mutilação e cenas constrangedoras.
21. NOTÍCIAS sobre APREENSÃO de revistas e livros, censura prévia em jornais e revistas.
22. NOTÍCIAS ALARMANTES denunciando a presença de BOMBAS ou outro tipo de explosivo.
23. FALAR sobre o ex-sargento Manoel Raimundo Soares [morto sob tortura] ou s/viúva Elizabeth Challup Soares.
24. NOTÍCIAS, comentários, etc., referentes a TÍTULOS DE CIDADANIA propostos em Assembléia Estaduais ou Câmaras Municipais a altas autoridades do país.
25. DIVULGAÇÃO de matéria relativa a concitamento à luta de classes, à greve geral e à rebelião, bem como à instigação de discriminação racial e social.
26. DIVULGAÇÃO, referência, artigo, notícia, etc., de caráter ALARMISTA a respeito de telefonemas anônimos, bombas ou explosivos, alarmes, incêndios em grandes edifícios.
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Senhor Redator:
Conforme radiograma recebido do Serviço de Imprensa do Gabinete da Direção Geral do DPF, fica proibido a divulgação de qualquer notícia abaixo relacionada:
1. Matéria de qualquer natureza relativa a pronunciamentos de estudantes, inclusive passeatas, deslocamentos, greve, panfletos e outras manifestações.
2. Matéria de qualquer natureza, inclusive tradução, transcrição, referência ou comentário sobre publicação em jornais e revistas estrangeiros, de matéria abordando temas ofensivos ao Brasil, suas autoridades e entidades.
3. Matéria de qualquer natureza referente ao livro ‘Depoimento’ de autoria de Marcelo Caetano.
4. Matéria de qualquer natureza referente ao tumulto ocorrido na estação MAUÁ, São Paulo, com trens.
5. Matéria de qualquer natureza relativa greve de fome ou insubordinação de elementos presos.
6. A fim de evitar informações tendenciosas que possam prejudicar diligências policiais, fica proibido a divulgação de matéria abordando fatos ilícitos praticados por funcionários de organização bancária pública ou privada, contra o estabelecimento a [que] estiver vinculado ou em prejuízo de terceiros.
7. Continua proibido a divulgação de pronunciamento, manifesto, de qualquer natureza, feito pelo ex-deputado FRANCISCO PINTO ou a ele atribuído.
8. Matéria de qualquer natureza com referência a política salarial, com exceção apenas para pronunciamentos dos Ministros.
9. Noticiário sobre alarmes denunciando a presença de bombas ou outros tipos de explosivos em qualquer local público ou privado.
10. Publicações de qualquer natureza sobre pessoal, atribuições, instrução, dotação orçamentária dos serviços de inteligência e órgãos do sistema de informações do Brasil.
11. Atribuir ou insinuar ligação com ação terrorista ou ato de sobotagem, o acidente ocorrido com aviões da FAB em data de 180974.
12. Notícia, comentário, referência e outras matérias sobre o esquema de segurança do Presidente GEISEL, em qualquer circunstância.
13. Fica proibido divulgar notícias ou outras referências dando atributos negativos a carne congelada ou estabelecendo comparações de qualidade entre carnes congeladas e frescas, e igualmente proibido noticiário acusando autoridades governamentais de protegerem frigoríficos estrangeiros.
Continuam em vigor as especificações dadas pelos agentes federais LAÉRCIO BATISTA DE ANDRADE e NEDER DUARTE.
Na oportunidade, apresento votos de consideração e apreço.
Ag. MAGNALDO JOSÉ NICOLAU DA COSTA
Chefe do Serviço de Comunicação Social da SR/DPF/PA
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Jornalista, editor do Jornal Pessoal, Belém (PA)