Com a renúncia de Jânio Quadros em agosto de 1961, ocorreu um fato político que merece atenção, considerando a questão da liberdade de imprensa como um dos eixos da moderna democracia. A decisão do presidente de renunciar, seguida do veto dos ministros militares à posse de João Goulart, não apenas jogou o país num impasse institucional, gerando uma crise de legitimidade do regime que se agravaria com a adoção do parlamentarismo como forma de governo.
Nesse novo cenário de luta aberta pelo poder, as forças conservadoras tentaram restringir o acesso aos debates públicos e conter a influência das mobilizações populares lideradas por trabalhistas e comunistas em favor da legalidade. Autoridades federais e estaduais contrárias à posse de Goulart tomaram uma série de medidas repressivas, entre elas a censura à imprensa, como a decretada na Guanabara pelo governador Carlos Lacerda. Argumentava-se que circulavam no estado panfletos subversivos, boatos alarmantes e notícias falsas que comprometiam as autoridades constituídas. A existência de exortações sediciosas tanto nas ruas como em jornais e estações de rádios também serviu como justificativa para a imposição da censura. Outra alegação teria sido a presença de elementos anarquistas e comunistas que, em vários pontos da cidade, estariam insuflando a população a alterar a ordem pública.
Primeiro governador eleito da Guanabara após a transferência da capital federal para Brasília, Carlos Lacerda era reconhecido pela expressiva liderança que exercia sobre os partidários da UDN e pelas campanhas de teor anticomunista e antinacionalista promovidas desde o segundo governo de Getúlio Vargas, que procuravam sensibilizar setores militares e das classes médias e eram difundidas especialmente pelo jornal Tribuna da Imprensa, de sua propriedade, e de O Globo. Defensor de medidas de emergência para reestruturar o Estado, Lacerda se articulou com os comandos das Forças Armadas durante a crise provocada pela renúncia de Jânio Quadros.
A formação da resistência
O governador determinou a censura aos jornais da Guanabara com a finalidade de intimidar o crescente movimento de opinião pública contrário ao golpe de estado desencadeado pelos ministros militares. Foram apreendidas pela Divisão de Polícia Política e Social e pela Polícia do Exército edições dos jornais Correio da Manhã, da Última Hora e do próprio O Globo.
Foram também designados oficiais militares para exercer a função de censores nos seguintes jornais: no Correio da Manhã, o coronel Euclides Figueiredo Filho; no Diário Carioca, o comandante Mario Pereira Reis; no Diário de Notícias, o general Oliveira Braga; na Luta Democrática, o tenente-coronel Herma Berconitz; na Gazeta de Notícias, o general Antero Coutinho de Azevedo; no Jornal do Brasil, o general Arnaldo Fontenelle e o coronel Milton Campelo Nogueira; no O Dia, o coronel Cesário de Oliveira; no O Jornal, o general Lascasas e o major Alízio; no A Notícia, o major Abreu Santa Rita; no Diário da Noite, o coronel Braga Chaves; no O Globo, o coronel Vieira Ferreira; na Tribuna da Imprensa, o general Vilas Boas; na Última Hora, o coronel João Guedes; no A Noite, o major Sergio Moraes Rego.
A resistência à censura imposta aos jornais cariocas não tardou a se formar. Como parte de um movimento mais amplo em defesa da Constituição, teve início uma campanha pela liberdade de imprensa desencadeada pelo Sindicato de Proprietários de Jornais e Revistas, com apoio da Associação Brasileira de Imprensa. Poucos dias depois de terem sido executadas as medidas repressivas, Lacerda fez um pronunciamento no qual suspendia a censura na Guanabara. Todavia, alguns diretores e proprietários de jornais e revistas já haviam decidido pedir a expulsão de Carlos Lacerda dos quadros da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), entidade na qual o jornalista ocupava um cargo de diretor. Alegava-se a absoluta incompatibilidade de Lacerda com a profissão jornalística. Assinaram o pedido de expulsão os seguintes jornalistas: João Calmon, dos Diários Associados; João Dantas, do Diário de Notícias; Nascimento Brito, do Jornal do Brasil; Luis Alberto Bahia e José Portinho, do Correio da Manhã; Paulo Silveira, da Última Hora; Nelson Alves, da Manchete; Antonio Cavalcante, da Luta Democrática; Othon Paulino, de A Notícia e O Dia; Dilermando Pereira, da Gazeta de Notícias; Genival Rabelo, do PN; Antonio Ibrahim Hadad, da Vida Doméstica; Mario Martins, de A Noite, e Sinval Montalvão, do Diário Carioca.
O Globo contra o comunismo
Enquanto era pedida a expulsão de Carlos Lacerda da SIP e o jornal Última Hora, após a apreensão de sua edição, classificava-o de governador-policial, de traidor da própria condição de jornalista e inimigo das franquias constitucionais, o jornalista Roberto Marinho assumiu publicamente a defesa do governador da Guanabara. Entre os jornais com influência na opinião pública, O Globo talvez tenha sido o único a não concordar com a expulsão de Lacerda da SIP. Em editorial assinado, o proprietário de O Globo argumentou que o seu jornal não aceitava ‘que se procure atingir no governador o jornalista’. Embora admitisse que a censura autorizada por Lacerda teria cometido ‘excessos reprováveis contra os jornais cariocas’, ponderou que o governador ‘agiu como autoridade que procurava manter a ordem pública’. O editorial avaliou que o Rio de Janeiro continuava a ser o principal centro político e cultural do país, além de ser o ponto de maior concentração de forças militares. Por esse motivo, o estado seria também o alvo mais visado pelos comunistas. Roberto Marinho finalizou o texto pedindo ao presidente da SIP que convocasse todos os membros da entidade, incluindo os que pediram a expulsão de Lacerda, para se unirem contra os atentados à liberdade de imprensa que estariam ocorrendo em Cuba.
Que lições devemos extrair desse episódio? É importante notar inicialmente que a construção de narrativas não se desenvolve independentemente das circunstâncias históricas. A ascensão de Goulart à presidência da República representou no país o acirramento das disputas ideológicas que se travavam no contexto internacional da Guerra Fria, envolvendo os EUA e a União Soviética, entre o modelo adotado pelo capitalismo ocidental, constituído pelos valores da democracia e do livre mercado e aquele associado ao projeto comunista, identificado com o controle autoritário do Estado. Isso nos diz que a imprensa carioca não só incorporou os termos desse debate ideológico, mas criou significados para influenciar os seus rumos.
Assim, poderemos compreender melhor os conflitos surgidos durante a campanha contra a censura na Guanabara. Das divergências entre os jornais em concorrência pelas faixas de público emergiram alguns temas que se tornariam dominantes após Goulart ter assumido de fato o poder. De um lado, O Globo enfatizava a luta contra o comunismo e, de outro, os demais jornais que, em vez de reforçarem o apelo em favor de segurança e ordem pública, priorizavam naquele momento a manutenção das liberdades públicas.
Às elites as decisões
Em seguida devemos reconhecer que a liberdade de imprensa como um direito inscrito na Constituição é uma conquista da sociedade. A suspensão dos abusos e violências cometidas contra a imprensa carioca após a renúncia de Jânio Quadros deve ser creditada à mobilização das suas entidades representativas, que contaram com apoio da opinião pública e de parlamentares comprometidos com a legalidade, fazendo parte de um movimento nacional em defesa das regras democráticas da Constituição.
Ficou também provada a força da proposição formulada pelos filósofos clássicos de que a liberdade de imprensa é a primeira das liberdades a ser atingida quando se quer impor um regime tirânico. Os que decretaram, executaram, apoiaram ou fizeram concessões aceitando a censura aos jornais cariocas, como um mal necessário para conter uma suposta convulsão política protagonizada por comunistas, colocaram em questão as instituições do regime democrático, sacrificando a liberdade em nome da ordem pública e em defesa de uma perversa ordem social.
Dessa forma, deram prioridade à preservação dos costumes autoritários enraizados no país, ao tentar reprimir a vontade política das massas populares e reservar às elites as decisões que deveriam ser tomadas em nome dos interesses nacionais. No âmbito desse espírito, de acordo com o moderno pensamento conservador, a propriedade é quem governa a nação e a liberdade, quando não está ancorada nas tradições do país, conduz aos excessos e à desordem pública.
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Doutor em História Social pela USP, pesquisador-bolsista da Faperj