Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

A ditadura só mudou de nome

Primeiro de abril de 2007, domingo, dia da mentira. Primeiro de abril de 1964, dia da quartelada, do golpe civil-militar apoiado pela CIA. Dia em que paulistas reacionários conseguiram o que tentavam desde 1932 com a fracassada ‘Revolução Constitucionalista’.

Dia em que os tanques de guerra desfilaram pela Av. Rio Branco, no centro do Rio de Janeiro; dia em que soldados brasileiros apontaram suas baionetas contra o povo brasileiro.

Primeiro de abril de 1964, dia em que o jornal O Globo estampou em manchete: ‘Fugiu Goulart e democracia está sendo restabelecida’. Primeiro de abril de 2007, aniversário de 43 anos dessa farsa a que chamaram ‘redentora’.

Não foi só O Globo. Toda a mídia colombina apoiou o golpe. Depois, alguns se voltaram contra a ditadura. Só as Organizações Globo apoiaram-na até o final.

Importante ressaltar que aquele período não pode ser lembrado como um passado remoto. Tudo o que vivemos hoje está diretamente relacionado com o golpe e com os 21 anos da ditadura que prendeu e arrebentou.

Controle sobre o noticiário

E enquanto torturavam pessoas apenas porque ousavam sonhar com um país democrático, os civis e militares golpistas se esforçavam por agradar às corporações estrangeiras – as grandes beneficiadas com o golpe. Veja o que Glycon de Paiva, vice-presidente do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), entidade financiada por banqueiros e empresas multinacionais, escreveu no dia 5 de dezembro de 1968 (oito dias antes do AI-5):

‘Ilmos. Srs. Diretores da Coca-Cola Indústria e Comércio Ltda. Av. Nilo Peçanha, 151 – 6º

Prezados senhores, venho trazer a seu conhecimento pessoal, pedindo-lhes que o retenha em seus arquivos, o resumo anexo da conjuntura atual da pressão comunista entre nós, conforme levantamento procedido.’ (1964: A Conquista do Estado, de René Armand Dreifuss. Editora Vozes. Apêndice U, página 826)

Parece brincadeira, mas é verdade. Quem duvidar, pode consultar o livro – aliás, sua leitura é extremamente recomendável. A Editora Vozes teve a grandeza de reeditar, no ano passado, essa obra que se mostra cada vez mais atual. Como registra o verso da capa:

‘O livro de René Armand Dreifuss deve ser lido como a reconstituição de um passado que, no entanto, está presente, sob outras formas, na realidade de hoje e, em grande parte, determinando ainda os rumos de nosso futuro.’

‘Acabou a ditadura, mas obviamente continua havendo um controle sobre o noticiário. Para o jornal não interessa que saiam certos tipos de notícia’, disse Luís Fernando Veríssimo em entrevista ao FazendoMedia (setembro de 2005).

Força opressora da mídia

Nada acontece por acaso. Hoje, os meios de comunicação de massa disseminam a idéia de que vivemos numa crise, assim mesmo, sem mais explicações. E talvez o sujeito passe até a achar natural um salário mínimo de 350 reais. Mas, misteriosamente, não existe crise para o sistema financeiro – prova disso é o lucro cada vez maior dos bancos. Hoje, os maiores bancos lucram cerca de 2 bilhões de reais por semestre. Mas quando um bancário perde 100 reais por ter feito uma conta errada após trabalhar oito horas sob pressão e assédio moral, o banco exige que aquele trabalhador o reembolse, descontando de seu mísero salário.

É por isso que quando manifestantes atacam agências bancárias não se trata de um ato de vandalismo. A mídia colombina esconde, mas os manifestantes nunca atacam pessoas. Não são vândalos, são cidadãos bastante conscientes da realidade opressora em que vivemos. Vandalismo são as tarifas bancárias, a taxa de juros, o spread bancário e outras artimanhas do sistema financeiro. Se arrumaram uma maneira ‘legal’ de roubar o povo, então é legítimo que o povo se defenda. Aliás, legítimo, não. Quebrar uma agência bancária, assim como todo ato de resistência ao poder, mais que legítimo, pode ser considerado um ato de extrema beleza poética.

O povo brasileiro é um dos mais aguerridos do mundo. Em diversos momentos da nossa história tentamos nos libertar da dominação estrangeira. Insurreição Pernambucana, Zumbi dos Palmares, Revolta dos Malês na Bahia, Antônio Conselheiro em Canudos, além da resistência empreendida por alguns bravos companheiros durante a ditadura, entre outros episódios.

Hoje, não fosse a mídia de massa trabalhar 24 horas para nos controlar, a revolução já teria vencido. Mesmo contra a vontade dessa mídia, 20 mil brasileiros foram às ruas protestar contra George W. Bush. Vinte dias depois, 10 mil estudantes tomaram as ruas do centro do Rio para protestar contra o fim do passe-livre. No momento em que compreenderem a força opressora dos meios de comunicação de massa, essas 30 mil pessoas – e outras tantas – marcharão contra as sedes das maiores emissoras de televisão do país.

Parlamentares com ‘fala cativa’

Porque a televisão é a maior instituição de controle social. Ela atinge 99% dos lares, mais que a escola, a igreja e a família. No Brasil, seis emissoras controlam todo o espectro da televisão aberta. Trata-se de um oligopólio. E ilegal. Uma violação explícita do artigo 220 da Constituição. Além de ser ilegal, esse oligopólio está ideologicamente afinado. Sua linha editorial é apenas uma: forjar uma opinião pública dócil e, dessa forma, tornar possível a exploração do povo brasileiro e de nossas riquezas.

Duvida? Vamos pegar todas as editorias, uma por uma.

** Economia: não se divulga outro modelo que não seja esse que está aí. Mesmo já tendo dado todas as mostras de ter fracassado, não há espaço sequer para o debate de modelos alternativos. No Brasil não se discute o modo de produção socialista cubano, onde ninguém passa fome. Não se discute o modo de produção da social-democracia sueca, onde a diferença salarial máxima é de seis vezes e os grandes industriais pagam 80% de impostos; não se discute sequer o modo de produção capitalista em países como França e Inglaterra, ou mesmo os EUA, onde há mais controle sobre o fluxo de capitais, por exemplo. Porque, se discutissem, descobriríamos que no Brasil o que existe está mais para feudalismo ou escravismo.

** Internacional: outro dia um repórter disse que ‘a onda de violência no Iraque aumentou apesar da chegada de novas tropas dos EUA’. Ou seja, por este raciocínio a violência no Iraque aumenta ‘apesar’ da chegada de novas tropas, e não ‘em função’ da chegada dessas tropas. É como se os EUA tivessem invadido o Iraque para garantir a paz, e não para roubar seu petróleo. Em outras palavras: nas matérias internacionais, a linha editorial é de legitimação de invasões e, conseqüentemente, de toda a sorte de agressões, seqüestros, torturas e até o genocídio cometido por um país contra outro.

** Política: os parlamentares que possuem fala cativa nos principais telejornais são invariavelmente os representantes daquilo que há de mais reacionário na direita brasileira. Assim, pauta-se o debate a partir de construções e enunciações – e mesmo da linguagem – utilizadas por aqueles que aceitam a existência de trabalho escravo em fazendas, dos defensores da máxima ‘estupra, mas não mata’, do aumento da repressão como única forma de combater a violência etc.

** Cultura: entre meio-dia e meia-noite, a maior emissora de televisão do país leva ao ar seis horas de novelas, isso sem contar aquela esquizofrenia coletiva que já se encontra em sua sétima edição. A empresa chama isso de cultura e, se bobear, de educação. Enquanto isso, a riqueza cultural brasileira – espalhada por todos os cantos do país em quilombos, tribos indígenas e inúmeras outras expressões regionais – sofre, calada, muitas vezes se perdendo no tempo. Não é raro que povos estrangeiros conheçam mais certos aspectos da cultura brasileira do que nós mesmos, tamanho é o descaso dessa mídia.

E por aí vai. Você pode pegar qualquer editoria que vai perceber a mesma orientação. Essa mídia não critica a violação da Constituição federal de 1988 que, em seu artigo 153, determina a cobrança de impostos sobre grandes fortunas; em seu artigo 26 determina a criação de uma CPI para a realização de uma auditoria da dívida pública. Essa mídia também não lembra que em outros países existem leis que limitam a remessa de lucros e que se o mesmo fosse feito aqui haveria mais dinheiro para investimentos e etc.

Salário de fome

Toda essa negligência se reflete na maneira de agir, pensar, sentir e viver de cada indivíduo e, por extensão, de todo o corpo social. Por exemplo, mesmo que o petróleo esteja acabando no mundo inteiro, essa mídia apóia editorialmente o leilão do petróleo brasileiro. O cidadão que não tem acesso a informações alternativas, vai viver achando que leiloar o petróleo é uma coisa boa. Portanto, não vai se revoltar com isso.

E esse raciocínio vale para todos os outros aspectos. É possível que existam inúmeras pessoas que odeiam o MST sem saber o que, de fato, representa este movimento.

Devemos reconhecer, o quanto antes, que não existe comunicação na mídia colombina. O que existe são palavras de poder, extremamente perigosas, que atravessam a retina e alcançam diretamente nosso sistema nervoso. Quem não é capaz de filtrar essas mensagens torna-se imediatamente uma espécie de morto-vivo que agirá sob efeito hipnótico. Com o tempo, passará a ser um agente do poder e repetirá seus dogmas como se fosse um papagaio adestrado. Dará a vida para defender o atual estado de coisas que, para ele, será o único viável, como lhe disse a mídia.

O primeiro de abril de 1964 não terminou. A história está viva e o que aconteceu há 43 anos se reflete em nosso dia-a-dia. Não vivemos numa democracia, assim como não vivíamos antes. Milhares de brasileiros foram seqüestrados, torturados e assassinados por esse mesmo sistema de poder que hoje nos controla. Os assassinos estão livres, uns inclusive pleiteiam ministérios. Muitos ocupam o Parlamento. Em vez de presos políticos, os presos de hoje são os rejeitados pelo tal mercado. O país tem 190 milhões de habitantes, mas o sistema determinou que apenas 40 milhões seriam consumidores. Quem não se enquadra, quem não aceita receber salário de fome e se revolta, vai preso. E é torturado nas masmorras pós-modernas. A ditadura só mudou de nome.

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Jornalista, editor do FazendoMedia