Há aproximadamente um ano, dava-nos a saber um irritadiço Diogo Mainardi que, dali por diante, Lula desapareceria de suas colunas semanais de Veja. Para Diogo, Lula havia morrido. Cessara de existir, para efeitos jornalísticos. Diogo apresentou as suas razões: estimava que, ao longo de sua vida, tinha dedicado mais tempo ao relato da obra de Luiz Inácio do que a certos clássicos da literatura universal, como os Tolstóis e Flauberts. São justos. Justíssimos os motivos apresentados pelo cronista.
Eu, cá com os meus botões, também tendo refletido, cheguei a uma decisão assemelhada. Decidi que vou ignorar solenemente, doravante, tudo o que sair da boca (da pena, da caneta, do teclado) de um outro presidente brasileiro. Não, eu não me refiro ao poeta do Maranhão, nem ao topetudo de Juiz de Fora, mas, sim, ao sorbonnard. Os motivos não são exatamente pessoais, intelectuais, políticos ou partidários; e tampouco posso eu sair com a desculpa de ter dado prioridade, nos últimos anos, às veleidades da política, em detrimento dos bons livros. Não chegaria a tanto. A minha decisão não foi fruto de impulso. Fui frio. Calculista até. Busquei indícios que respaldassem a minha descrença. Resgatei algumas boas evidências para o meu caso.
E cheguei a uma conclusão inapelável: não faz o menor sentido seguir dando toda essa atenção – que os meios de comunicação geralmente concedem (vide Veja, edição nº 1.948, de 22/3/2006) – ao que diz o senhor ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso. Será aquilo um homem ou um camaleão? Dança com desenvoltura todas as músicas que se lhe apresentarem. Agrada a muitas e variadas platéias. Mas quem ele é, de fato? Alguém sabe?
Esqueçam o que eu disse
Foi ele quem mandou, afinal. Mas nós não aprendemos nunca. Precisamos sofrer – e sofrer muito – para assimilar a lição do professor. Confesso que me dei ao trabalho de verificar o que ele dizia. E até me surpreendi. Breve passeio pelas páginas de sua obra mais celebrada, a co-produção Dependência e desenvolvimento na América Latina (parceria com o chileno Enzo Faletto), descortina o esforço sociológico, os traços firmes, o inconfundível estilo acadêmico, o raciocínio fácil desse pensador da (outrora aclamada, ora vituperada) geração ‘dependentista’ latino-americana. Dependência traz o melhor e o pior de uma escola. Representa o fino da bossa pós-colonialista; é um ensaio fluido, bem redigido, e ainda assim crítico. Denunciam-se ali os velhos padrões de dominação internacional que se vêm repetindo desde priscas eras. Articulam, os autores, conceitos úteis, tais como o de ‘subdesenvolvimento’ (que não se confunde com o de ‘não-desenvolvimento’).
Não obstante, trata-se claramente de obra datada. A metodologia é legatária das correntes hegelianas e marxistas que floresciam no subcontinente latino-americano. Tende-se à visão unidimensional do processo histórico. E, sobretudo, o enfoque é estático – comum, de resto, ao estruturalismo praticado em qualquer tempo e lugar. Diz-se de um professor britânico que, certa feita, teria ironizado: ‘A obra é interessante. Mais interessante é saber que, como a posição dos países na cadeia da economia internacional está dada, o ‘futuro’ está revelado’.
Passadas três décadas, as convicções de Cardoso esboroaram. Ao menos, partiu dele próprio a súplica de que não fosse cobrado por seus escritos. Devia ter as suas razões. Afinal, ele mudou, o Brasil mudou, o mundo mudou – tem-se dito. Que a matéria está em constante fluxo, já o sabemos desde um Heráclito – ou talvez antes, com Buda. Também sabemos, desde o tempo de um pré-socrático, que alguns valores insistem em habitar-nos o espírito. As convicções e crenças não nos abandonam assim, com uma rajada de vento. Comte, mesmo ele, admitia a ‘ordem na mudança’ – uma espécie de ordem dinâmica. Platão, para tentar explicar o fenômeno da continuidade a despeito dos fluxos, lançou mão do conceito de ‘ritmo’. Sim, senhores: o brasileiríssimo ritmo. Denominou ‘ritmo’ a capacidade de permanecer em um determinado estado, ainda que sob a influência das forças cambiantes. O equilíbrio dinâmico é o resultado do ritmo.
Dois trechos são ilustrativos do que estou a abordar. Separa-os no tempo um intervalo de mais ou menos 36 anos. O primeiro faz lembrar o aguerrido sociólogo esquerdista de Dependência. O segundo é um texto recente, redigido em 2004, em prefácio a uma obra que trata das reformas estruturais do Estado brasileiro durante os oito anos de governo FHC.
É necessário que se hajam produzido no mercado internacional transformações ou condições que favoreçam o desenvolvimento, mas é decisivo que o jogo político-social nos países em vias de desenvolvimento contenha em sua dinâmica elementos favoráveis à obtenção de graus mais amplos de autonomia. [Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto. Dependência e Desenvolvimento na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2004 (Original de 1967), p. 41.]
Os mais radicais dirão: façam como em Cuba, como a China anteriormente à abertura de sua economia aos fluxos financeiros e ao mercado internacional, ou, quem sabe agora, como a Malásia: isolem-se. Fácil dizer, difícil fazer e, pior, há que se pagar um preço não desejável… [Prefácio de Fernando Henrique Cardoso à obra Reformas no Brasil: Balanço e Agenda (organizada por Fábio Giambiagi, José Guilherme Reis e André Urani). Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2004, p. XI.]
Pelo visto, faltou ritmo a FHC. É até curioso como a combatividade da primeira passagem contrasta com o conservadorismo do segundo extrato. Se, antes, Cardoso via mérito na articulação doméstica de ‘elementos favoráveis à obtenção de graus mais amplos de autonomia’, agora ele só enxerga a imprudência dos ‘mais radicais’. Se, antes, ele não hesitava em postular saídas e advogar caminhos (‘É necessário…’), hoje ele se resigna (‘Fácil dizer, difícil fazer…’). Se, antes, falava o acadêmico comprometido com valores da esquerda, hoje resta a retórica alarmista da direita (ou será que FHC só consegue conceber a Cuba de Fidel e a China de Mao como modelos alternativos ao atual estado de coisas?). Pergunta singela: fosse esse homem um vendedor, você compraria dele uma apólice de seguro?
Hoje, ontem e anteontem
Mais interessante do que confrontar um FHC de fins dos anos 1960 com o FHC de hoje (distantes no tempo em quase 40 anos) é comparar o que ele diz hoje e o que disse anteontem. Essa, sim, é uma experiência de resultados espantosos e profícuos. O ex-presidente esteve a palestrar na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, em fevereiro de 2005, num evento anual que se propõe à reunião dos ‘amigos’ de Henry Kissinger, o ex-secretário de Estado americano. Desta vez, o sorbonnard foi convidado. Como não poderia deixar de ser, a palestra tornou-se um happening nos grandes jornais e revistas brasileiros. Noticiou-se o supérfluo: que o ex-presidente falaria em inglês (longe de impecável, diga-se) para uma vasta audiência estrangeira. Esqueceram de reportar o conteúdo da palestra.
Cardoso iniciou a alocução saudando o anfitrião, Kissinger, de quem se disse ‘um velho amigo’ (sim, senhores, o mesmo Kissinger que, em outras jornadas, promovia ditaduras sanguinolentas na América Latina, impondo a uns e outros, direta ou indiretamente, o exílio político). Após transitar por alguns temas da ‘agenda internacional’, o palestrante pôs-se a falar sobre democracia. E a ressaltar as virtudes da democracia deliberativa.
Opa, deixem-me voltar a fita: Fernando Henrique Cardoso bendizendo a democracia de-li-be-ra-ti-va? Aquela coisa de petista? Que faz lembrar conselhos de gestão? Orçamento participativo? Assembleísmo? Decisões colegiadas? Prévias internas às indicações de candidatos do partido? Pois é. Em meia hora de pronunciamento, as palavras ‘deliberation’ e ‘deliberative’ foram resgatadas, sempre em tom elogioso, meia dúzia de vezes. Mais intrigante: Cardoso disse que uma democracia deliberativa – que integre o corpo dos cidadãos no processo de discussão e decisão política – é o formato de democracia que se deseja ter no mundo. Engraçado: não era o PSDB, ontem mesmo, o guardião do ‘republicanismo nacional’? Anteontem, não eram os conselhos de gestão e orçamentos participativos a faceta mais demagógica do PT? Fiquei sem entender nada.
Adiante, já bastante descontraído, Cardoso divaga sobre o American way of life. Relata que, quando chegou àquele país, depois de seus estudos superiores na França, estava preparado para rejeitá-lo. Afinal, aquilo era a terra do imperialismo. Ele, um latino-americano, formado na França, vindo de uma militância de esquerda. Mas, estranhamente, FHC confessa que gostou dos Estados Unidos, tão logo se pôs a caminhar por suas ruas. ‘Havia espaço. O espaço é uma coisa muito americana. As pessoas aqui têm a sensação de que podem fazer o que quiserem. No fundo, a gente sabe que não é assim [risos]. Mas as pessoas acreditam… [mais risos]’. O tom era o da galhofa. A platéia respondeu generosamente aos gracejos de Cardoso. Eu, que sou meio sem graça, fiquei pensativo, com certa gravidade no semblante. Cogitei: será que é essa a democracia deliberativa que quer o Fernando Henrique? Aquela em que as pessoas ‘acreditam que podem fazer o que quiserem’ – e que Cardoso sabe tratar-se de uma vã ilusão?
O mundo mudou, e eu mudei também
Como afirmei antes, não são propriamente os aspectos pessoais ou políticos da biografia de Fernando Henrique Cardoso que me movem à redação deste ensaio. Antes, acho que dele me valho para tentar entender o nomadismo da ética na vida contemporânea. Pois, vejam: refletir sobre ética sem incorrer em moralismos é empreitada difícil, mas não inviável. O homem tem buscado, pelo menos desde os antigos helênicos, um entendimento sobre o que seria a ‘boa vida’. A vida decente, vivida com dignidade, perseguindo-se o ‘bem’. É natural que essa busca tenha encontrado manifestações distintas de pessoa para pessoa, de cultura para cultura, de lugar para lugar, de época para época. Mas a ética per se é um ideal absoluto, uma essência imperecível e universal, um objetivo permanente. Um homem ético é-o em qualquer latitude e longitude, sob qualquer temperatura e pressão, se falante de chinês ou de aramaico – nada disso influenciará a sua condição ética. E seus referenciais da ‘boa vida’ tendem a se cristalizar com o correr dos anos.
Acredito ainda que a consciência ética do homem se aperfeiçoe e se fortaleça – diferenciando-nos, assim, de outras espécies animais. Não se quer defender aqui um perfil de ser humano 100% coerente (caso ele existisse) no curso da vida. Como já ensinava Aldous Huxley, homens absolutamente coerentes em seus princípios e ações são os que habitam os cemitérios – pois estão mortos. Mas a constatação não desobriga o homem de um genuíno e inarredável compromisso com a ética. De buscá-la em todas as situações. A relativização de valores tem, sim, os seus limites (mesmo que sejam mínimos). E, se não estiver equivocado, ainda não ingressamos na era do ‘vale-tudo’, da amoralidade, da ética à la carte. Ao menos, é nisso que se quer crer.
Ora: diante de todo o exposto, por que não acatamos, de uma vez por todas, o pedido do ex-presidente Cardoso? Deixemo-lo uivar ao luar. Sem platéia. Sem cobertura da mídia, pois. Esqueçamos tudo o que ele disse, diz e dirá. Eu prometo fazer a minha parte, à la Mainardi. Ah, e não deixando de creditar a César o que é de César: ‘O mundo mudou, e eu mudei também’ é frase de Luiz Inácio Lula da Silva, em entrevista ao periódico americano Newsweek, em 5 de agosto de 2002. Justificava, então, com essas palavras, a sua oportunista guinada para o ‘centro’ do espectro político brasileiro. É… Talvez Diogo não estivesse de todo errado quando tomou a sua decisão de ignorar Lula. Uma pena que não a tenha cumprido. Em relação a FHC, eu farei a minha parte.
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Cientista político, editor do periódico O Debatedouro