Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

A propósito de um filme

Não estou bem seguro mais do ano. Porém, acho que foi em 1976 – ou teria sido em 1977? O fato é que, convocado por Georges Fournial, histórico dirigente do Partido Comunista Francês, eu fui assistir, em companhia de outros amigos brasileiros radicados em Paris, a um depoimento de Luiz Carlos Prestes sobre a lendária Coluna que ele comandara no Brasil meio século antes. A Coluna Prestes, justamente. Mais do que um filme, nós todos assimilamos uma verdadeira aula de História do Brasil. Com o próprio professor por personagem principal. Com Prestes por testemunha.

O evento se deu em uma sala de teatro, improvisada, se me lembro bem, em sala de cinema. A casa estava lotada – certamente se agrupavam ali três ou quatro centenas de pessoas. Por essa época, eu ainda não conhecia pessoalmente Luiz Carlos Prestes, de quem meu pai era um velho e querido companheiro de lutas partidárias. E era normal até que eu não o conhecesse: o Velho, como era carinhosamente chamado pelos seus companheiros do Partido Comunista Brasileiro, o Partidão, vivera grande parte de sua vida na clandestinidade mais absoluta, cadeia ou, então, no exílio. Sua dedicação à causa da liberdade, sua coragem e sofrimento impressionaram homens como o poeta chileno Pablo Neruda. E Neruda não era de se deixar impressionar com facilidade.

Eterno proscrito da vida brasileira, a verdade é que poucas pessoas tinham, até aquela data, acesso ao Cavaleiro da Esperança. Por isso, eu só vim a conhecê-lo em 1979, quando, por força da anistia, Prestes retornou de uma longa permanência na antiga União Soviética. Dá para entender. A sua chegada ao Brasil, quando cerca de dez mil pessoas se deslocaram ao Aeroporto Internacional do Galeão, no Rio de janeiro, foi uma verdadeira apoteose. O velho lutador merecia essa homenagem.

Pergunta inevitável

Voltemos à França e ao filme. O Prestes que discorria sobre as escaramuças da sua Coluna Invicta nunca mais me sairia da cabeça. Sua vivacidade, o brilho dos seus olhos maravilhavam a maioria de nós. A memória prodigiosa do Cavaleiro da Esperança perpassava os fatos com uma precisão absoluta. Decididamente, o homem ainda estava em forma, apesar de, àquela altura, contar com quase 80 anos de idade. Luiz Carlos Prestes era um herói dos tempos antigos – só que em pleno século 20.

O documentário, rodado em Moscou, era muito simples e objetivo (infelizmente, parece que se perdeu). Prestes dava o seu depoimento sentado. À sua esquerda, havia um grande mapa do Brasil – e ele apontava as diferentes localidades por onde a Coluna passara, em sua longa marcha de 27 mil quilômetros pelo interior do Brasil, até a sua internação nas selvas da Bolívia, sem nunca ter perdido um combate sequer em quase três anos de luta. Daí o título de Coluna Invicta. E pensar que Prestes logrou tudo isso à frente de algumas poucas centenas de soldados! Raramente, na História, um chefe militar escrevera uma página tão épica.

Diante de Luiz Carlos Prestes, entrevistando-o sobre os acontecimentos que marcaram a epopéia da Coluna (e sua época histórica), estava um jovem magro, de cabeleira preta, que permanecia o tempo todo de costas para a câmera. O jovem em questão era o seu secretário político em Moscou. Seu nome e seu rosto eram mantidos sob rigoroso sigilo. Não convinha mostrá-los.

Poucos anos depois da projeção desse filme, a ditadura começava a ruir e os brasileiros que se encontravam no exterior retornavam à pátria. Infelizmente, Luiz Carlos Prestes rompe com o PCB em 1980, lançando a sua famosa ‘Carta aos Comunistas’. Mas a maioria dos militantes opta por permanecer no partido. Entre eles, o seu jovem secretário de Moscou. Com a legalidade do PCB, a minha relação com esse jovem – agora, é bem verdade, um homem já mais maduro – pôde se estreitar sem grandes sobressaltos. Fiquei conhecendo a sua passagem pela União Soviética, o trabalho que realizara ao lado de revolucionários históricos como o próprio Luiz Carlos Prestes, Gregório Bezerra, Luís Tenório de Lima e Teodoro de Mello. E aí veio a pergunta inevitável: ‘Não foi você quem entrevistou o Prestes em um documentário que o partido francês divulgou em Paris?’, indaguei-lhe. A resposta, positiva, também veio sob a forma de pergunta: ‘Mas como você me reconheceu? Só pode ter sido por causa da minha cabeça chata de cearense…’ Fui obrigado a concordar inteiramente com o seu comentário de fundo antropológico, digamos assim…

Luta obstinada

Os cabelos daquele jovem começaram a ficar ligeiramente mais brancos e seu corpo ganhou um pouco mais de peso. Com o passar do tempo, ele se transformou, por seu turno, no secretário-geral do Partido Popular Socialista (PPS), sucessor do antigo Partidão de Prestes. A dedicação que devota ao partido e às causas libertárias chega a ser comovente. Modesto, sempre entusiasmado, ele é de uma solidariedade humana a toda prova. A generosidade está em fazer – não em alardear. Mais: de uma energia espantosa, nunca esmorece na luta contra a opressão do homem pelo homem, em toda as suas modalidades. Esses anos todos de convivência com ele me permitem afirmar isso.

O meu amigo permanece fiel às idéias que abraçou ainda no final dos anos 1950, no seu querido Ceará. Menino pobre do interior, aos dez anos de idade já auxiliava o pai – lavrador e padeiro –, empurrando carrocinha de pão pelas ruas da cidadezinha onde morava, Baturité. Tendo sido preso várias vezes após o golpe de 1964, ele amargou ainda a clandestinidade e o exílio. Duro para ele ter de se afastar dos entes mais queridos. Intelectual orgânico, seguindo os passos de Antonio Gramsci, ele nunca perdeu o amor pela vida, apesar das contrariedades que enfrentou. Decididamente, a liberdade é a única coisa que está acima da própria vida – essa a lição que ele nos dá.

Com militantes sociais e figuras humanas como ele, eu pude entender o verdadeiro sentido da palavra dignidade. E o real significado do termo abnegação. Considero-me um privilegiado por isso. Qualquer um no meu lugar se consideraria.

O meu amigo estudou e percorreu os caminhos do mundo. ‘O verbo da vida é andar’, escreveu certa vez Álvaro Moreyra. Conheceu a nata da revolução, de Nikita Kruschev a Jacques Duclos e deste a Ernesto Che Guevara (apavorada, a sua família queimou, no dia do golpe, as suas fotografias com o Che). Meu querido amigo da pequenina Baturité viveu como poucos a sua época. ‘O limite do projeto individual é o coletivo’, disse-me ele uma vez.

Posso afirmar que ele foi a melhor pessoa que conheci na vida, ao lado de Oscar Niemeyer e Agliberto Vieira de Azevedo. Assim como o meu querido amigo entrevistou Luiz Carlos Prestes há três décadas, espero entrevistá-lo também um dia. Com uma diferença: prometo ficar de frente para a câmera, postado ao seu lado. Afinal, os tempos mudaram. Graças à luta obstinada de homens honrados como o meu companheiro e irmão Francisco Inácio de Almeida, nós não precisamos nos esconder mais.

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Historiador e autor, entre outros, de Memorial dos Palmares, Brasil, 500 anos em documentos e Velho Chico mineiro