Os anúncios de fuga, venda e aluguel de negros no século 19 são considerados os primórdios dos atuais classificados que se encontram impressos nos jornais que circulam no cotidiano dos brasileiros. Analisando sob o prisma econômico, o negro era considerado uma mercadoria (um bem), da qual seu proprietário fazia o uso que desejasse da sua força de trabalho: a mão-de-obra escrava podia ser vendida ou alugada (escravos de aluguel).
A pesquisa histórica, em jornais de época, consolidou-se a partir do garimpo realizado pelo sociólogo pernambucano Gilberto Freyre (1900-1967). Este, ao realizar um levantamento de anúncios de escravos, nos jornais do século 19 para escrever o seu livro O Escravo nos Anúncios de Jornais Brasileiros do Século XIX (1963), declarou: “(…) mais do que nos livros de história, nos romances, a história do Brasil do séc. 19 está nos jornais”.
O tráfico negreiro
Nossa economia, durante o período colonial e imperial, foi baseada no latifúndio monocultor e na mão de obra escrava, onde o status social era proporcional à quantidade de escravos que o proprietário possuísse para servi-lo. A fuga ou morte de um escravizado representava um prejuízo financeiro a seu proprietário, principalmente após a Lei de Euzébio de Queirós (1850). Esta, que proibiu o tráfico negreiro no Brasil, acabou por intensificar o comércio interno entre as províncias e o custo para comprar um escravo ficou ainda mais caro.
Neste nefando mercado, o tráfico negreiro oferecia escravizados com altas taxas de custo visando a suprir a falta de mão-de-obra, que era adquirida na “Mãe África” por baixos valores ou pelo simples sistema de permuta. Os negros que morriam ou adoeciam, durante o percurso, eram jogados ao mar, denominado pelos escravizados de “calunga grande”. Este termo é usado pelos adeptos das religiões de matriz africana, significando cemitério. Ao embarcarem nos tumbeiros, eram misturados os negros oriundos de diversos locais da África e de dialetos diferentes, demonstrando, desta forma, a preocupação com levantes que poderiam ocorrer durante a viagem.
O negro saudável, em boa condição física, tinha um valor monetário alto e muitos enriqueceram praticando esta intermediação comercial, inclusive, com a participação, muitas vezes, de irmãos de etnia que, depois de comprarem sua liberdade (alforria), ganhavam dinheiro participando do aprisionamento e transporte nos tumbeiros (navios) de escravizados, para serem comercializados, a exemplo também de outros negros que, na condição de “capitães do mato”, perseguiam seus “irmãos de etnia” quando estes fugiam do cativeiro. O registro destas fugas, na forma de anúncios, em jornais da época, era uma prática comum. Na maioria das vezes, os proprietários destes escravizados prometiam uma recompensa a quem os encontrasse.
Venda, fuga ou aluguel de escravos
Ainda que paradoxal, é o fato de jornais que defendiam um discurso abolicionista, porém, devido a dificuldades de ordem econômica, divulgavam esses anúncios. Em Pelotas (RS), A Discussão (1881), de acordo com o historiador, escritor e militar Souza Docca (1884-1945), foi o jornal pioneiro, no Brasil, ao deixar de publicar anúncios nos quais estivesse presente a figura do escravizado.
O primeiro jornal impresso na província de São Pedro (RS), o Diário de Porto Alegre, iniciou sua circulação em 1º de junho de 1827, encerrando suas atividades em 30 de junho de 1828. O título do periódico foi uma homenagem à Capital da província gaúcha. Além da presença das notícias de teor político, do movimento comercial da cidade e também de poesias, eram constantes os anúncios de venda, fuga ou aluguel de escravizados. Seguem alguns exemplos de anúncios publicados neste periódico que foi o pioneiro da imprensa gaúcha:
Venda
>> Vende-se uma escrava parda, cozinheira, costureira, engomadeira e rapariga. Quem a quiser comprar procure na rua da Igreja nº 25, à direita, na esquina dos Pecados Mortais (trecho da atual Bento Martins).
>> Quem quiser comprar uma molequinha nova (escrava-criança) cozinha o ordinário. Quem pretender comprar dirija-se a rua do Arvoredo a casa nº 13 e ali achará com quem tratar.
Fuga
>> Uma escrava de nome Francisca de nação rebola, idade de 25 anos, estatura ordinária, beiços grossos e um sinal na testa como um círculo de um vintém, fugiu em março. Quem a trouxer dirija-se a rua do Cotovelo n º 70, que ganhará boas alvíssaras.
Aluguel
>> Quem tiver uma ama-de-leite que seja sadia e saiba tratar crianças e queira alugar, anuncie a sua moradia para ser procurado.
A presença destes anúncios foi uma característica marcante nos jornais do país, por um longo período, a exemplo do Correio Paulistano que, no dia 15 de abril de 1874, publicou a fuga de dois escravos de uma fazenda. “Escravos Fugidos – Fugiram em dias de Março do corrente anno, da fazenda de José Fernando d’Almeida Barros do município de Piracicaba, os escravos: Pantaleão, alto fulo, nariz afilado boa dentadura, bahiano, falla macia 30 annos. Fernando preto, baixo, corpulento, boa dentadura, bahiano 25 annos mais ou menos. Estes escravos foram trazidos a esta província ha pouco tempo pelo sr. Raphael Ascoli; levaram alguma roupa fina e blusa de baeta vermelha, e oferece-se uma boa gratificação a quem os prender e entregar ao seu senhor ou em São Paulo ao sr. José Alves de Sá Rocha.”
Abolição sem inclusão
A Revolução Industrial, liderada pela Inglaterra desde o século 18, trouxe mudanças nas relações de trabalho e produção, embora a exploração de mão de obra permanecesse, dando origem a vários movimentos e greves de operários (movimento do proletariado), que foram se organizando, enquanto classe, na defesa de seus direitos e melhores salários. Crianças e mulheres eram exploradas pelos proprietários das fábricas. Com as transformações, no campo econômico, surgiu o operariado que, sendo explorado pela classe patronal, passou a lutar por melhores condições de vida e justiça social. No Brasil, estas questões sociais, envolvendo reivindicações e greves, já no período republicano, foram tratadas como “caso de polícia”.
Retomando a questão da escravidão negra, quando foi do interesse britânico, os ingleses criaram, em 1831, uma lei proibindo o tráfico negreiro, pois o dinheiro investido, nesse mercado infame, poderia ser utilizado na compra de suas mercadorias, ampliando, desta forma, o seu mercado de consumo e gerando mais riqueza para o país.
O Brasil foi o último país a realizar a abolição (1888) nas Américas, assim como a última monarquia num contexto de países independentes e republicanos. A liberdade concedida, após 400 anos de escravidão, pela Lei Áurea de 13 de maio de 1888, ocorreu sem um planejamento de inclusão social para estes homens que, embora estivessem livres do jugo da escravidão, estavam despreparados para inserirem-se numa sociedade capitalista e competitiva, além de carregarem o estigma de terem sido escravizados, sofrido maus tratos e vendidos, como mercadoria, nos pregões e anúncios dos jornais da época.
Evidente que, dentro deste contexto de exclusão, a sobrevivência do liberto ficou limitada a espaços próprios dos cidadãos pejorativamente denominados de “terceira classe”, caracterizados pela baixa renda econômica ou por total ausência de recursos, vivenciando a miserabilidade e o esquecimento social. Ainda temos de considerar o fato de que muitos libertos preferiram seguir junto a seus antigos senhores a ficar ao relento da rua sem nenhum auxílio.
Em Porto Alegre (RS), no imaginário construído pelo preconceito, os locais conhecidos como territórios negros, a exemplo da Colônia Africana (atual bairro Rio Branco), Ilhota e Areal da Baronesa, eram considerados espaços “malditos” e frequentados somente por gente de “má fama”, como registrou a historiadora Sandra Jatahy Pesavento (1945-2009) em seu livro Uma outra Cidade / O mundo dos excluídos no final do século XIX, publicado, em 2001, pela Companhia Editora Nacional.
A sociedade ofereceu a liberdade, mas não o passaporte da cidadania que se estabelece pelo viés da inclusão social. Infelizmente, sentimos o legado nefasto desta política colonialista e excludente até os dias de hoje. O racismo, em suas diversas formas de manifestação, constitui-se num câncer social que deve ser extirpado, visando à construção de uma sociedade mais justa e fraterna. O caminho é longo e pontuado por inúmeros desafios, mas não podemos desistir desta conquista.
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Carlos Roberto Saraiva da Costa Leite é pesquisador e coordenador do Setor de Imprensa do Musecom