O jornalista Carlos Lacerda (1914-1977) dominou o cenário da vida política brasileira nas décadas de 40 e 50 do último século. Personagem controvertida pelas polêmicas na imprensa e as muitas inimizades feitas, suas ações revivem na pessoa do ator José de Abreu, na mini-série JK (Juscelino Kubitschek), da TV Globo. Lacerda é a mais perfeita e acabada força que se pode definir como um fenômeno da natureza humana, pela inquietude, inteligência e bravura. Essa figura nos faz lembrar um tornado, que na fúria do seu destino, não respeita nada. Não quer saber quem se acha na frente. O alvo da metralhadora giratória do jornalista transformava-se em escombros. Quanto ao resto é lenda.
Com Lacerda foi sempre assim. Um incorrigível. Contrariado nos interesses, o adversário ou o mais chegado dos amigos que esperassem a vez. Para estes também estavam reservados a ironia e o sarcasmo. Os estragos machucavam os ofendidos, porém, nunca ao ofensor. Não lhe faltava, no entanto, a capacidade de reaproximação. Alguns foram inimigos e se tornaram próximos. Nasceu para brigar e ai de quem o contestasse. Portador de um verbo inflamado, arrasador, instigante, veloz, com uma inteligência ágil e grande cultura, tudo isso associado a um temperamento que mudava conforme a maré, vejam só… Dom Helder Câmara, seu confessor, que ajudou a converter-se de ateu em cristão, auxiliado por Gustavo Corção, Alceu Amoroso Lima, Sobral Pinto e outros teólogos, nenhum deles escapou dos ataques, que provocaram mágoas.
Na guerra das palavras foi um homem sem meias verdades. E quando necessário, puxava da arma de fogo, para atirar e se defender, como foi no atentado no qual quase perdeu a vida. O amigo que o acompanhava, o major da aeronáutica Rubens Vaz, não teve a mesma sorte. Morreu no ato. Defeitos eram muitos – e quem não os têm? Não se pode negar a ousadia com que enfrentava os adversários, geralmente, encastelados no poder. Com ele, no dizer de José Cândido de Moraes e Silva, um jornalista maranhense (século 19) famoso, ‘o caso conto como sei / o caso conto, como foi / na minha frase, da constante lei / O ladrão é ladrão, o boi é boi’. As prisões o fortaleciam politicamente. Fazia um discurso na entrada e outro na saída. Não faltava platéia e adeptos fiéis.
Com a cabeça enfaixada
Há um ditado que diz: quem filho de peixe é peixinho será. O pai, Maurício, fez Lacerda a sua imagem, com as mesmas imperfeições e virtudes, a critério de quem os julgar. Fanatizado pelo comunismo, Maurício entregou-se de corpo e alma a essa ideologia. Abandonava semanas seguidas a família para cumprir o papel de fiel escudeiro e obediente às ordens do ‘partidão’. Quando Carlos nasceu recebeu na pia batismal o nome de Carlos Frederico Werneck de Lacerda, uma homenagem a Marx e Engels.
Apesar das diversas oportunidades de servir ao poder, Maurício, como advogado e pessoa preparada, não demorava muito na função: ao sentir que se achava no lugar errado, adeus trabalho. Voltava à clandestinidade e usava o jornal para atacar aqueles que lhe deram a mão. Muitas foram as prisões, com a polícia invadindo o lar, mesmo sendo filho de ministro do Supremo Tribunal Federal. Por último, na faixa dos 45 anos de idade, perdeu o emprego fixo e foi plantar batata e frutas num sítio para sobreviver. Maurício não levou um tiro no pé, como o filho no episódio do major Vaz, nem teve o rosto machucado pela brutalidade dos inimigos, mas, num comício, recebeu uma pedrada na cabeça. Os dois usaram alguns metros de gaze para enfaixar o local dos ferimentos. Pura coincidência.
Carlos, ao contrário do pai, não foi para casa esperar a dor passar. Com a cabeça enfaixada, no mesmo dia leu peça panfletária na Rádio Mayrink Veiga contra o inimigo e mandante da agressão, o ex-prefeito do antigo Distrito Federal, o general Mendes de Morais, a quem chamava de ‘Mussolini de Moraes’. Depois de renunciar ao comunismo sempre por desentendimentos e servi-lo como um cão de guarda, passou a atacar os ex-colegas.
Conforme a maré
Para irritar verbalmente o inimigo não poupava apelidos e expressões maliciosas, como fez com Iedo Daudt Fiúza, candidato de Carlos Prestes (com quem brigou de foice e martelo) a prefeito do Rio de Janeiro, apelidando-o de ‘Rato Fiúza’; aos jornais Folha do Povo e Tribuna Popular, ambos do PCB, alcunhou de ‘Rolha do Povo’ e ‘Mentira Popular’; numa referência ao filme Rebeca, ao presidente Getúlio Vargas chamava de ‘Rebeco, o ditador inesquecível’, e seus adeptos, de ‘rebequistas’. Na briga com Samuel Wainer, na qual valeu tudo, pelo fato de este haver contraído empréstimo do Banco do Brasil para implantar o jornal Última Hora, ganhou o apelido de ‘O corvo do Lavradio’ (local onde funcionava a Tribuna da Imprensa). Carlos Lacerda deu-lhe o troco: acusou Wainer de ‘chefe da malta do Mangue’, pela proximidade da sede do periódico de Wainer com a zona do meretrício.
Quanto ao general Juarez Távora, que dificilmente sorria e por quem confessava admiração, traçou-lhe o perfil: ‘Belo rosto de ídolo pré-colombiano, talhado em pedra dura’. Em outra oportunidade, perguntado pelo juiz num processo movido por Lutero Vargas, filho de Getúlio, se confirmava a acusação, ao chamá-lo de ‘ladrão’, ainda, acrescentou: ‘É também um degenerado’.
Carlos Lacerda, que mudava de posição política e ideológica conforme a maré do momento, não poupava nem seu partido, a UDN, e os amigos mais chegados, como Afonso Arinos. No retorno de Vargas à presidência em 1951, o udenista João Cleofas, convidado, aceitou dirigir o Ministério da Agricultura. Bateu de frente com Lacerda, que o considerou um ‘Judas da UDN’.
Cenas desnecessárias
Eleito Juscelino Kubitschek presidente da República, colocou-se contra a sua posse, por achar que o vice-presidente Jango Goulart, ligado à família de Getúlio Vargas, protegeria os amigos do ex-ditador. Com o suicídio de Vargas, foi acusado de contribuir com o desfecho fatal que chocou a nação, pelas denúncias diárias e graves sobre o ‘mar de lama’ do governo. Quem interveio para garantir a posse, depois de decretar o estado de sítio, foi o general Lott, ministro da Guerra. O jornalista viu-se obrigado a refugiar-se nos EUA, aconselhado por amigos, já que estava ameaçado de morte não por JK, mas pelos antigos desafetos.
É esse o Carlos Lacerda, um dos últimos personagens de uma geração de jornalistas românticos, boêmios e aventureiros. Gostava do uísque e às vezes exagerava. O idealismo ultrapassava vantagens materiais ou pessoais. Preocupava-se em melhorar a qualidade do jornalismo, tornando-o técnico e profissional. Falando sobre a missão da imprensa, lembrou que ‘um jornal é uma obsessão. É a obra de uma vida, a mais bela obra de uma vida, que por via dela adquire então pleno sentido’.
O desagradável da minissérie JK é o horário, tarde da noite. A Globo, além de obrigar o telespectador a assistir ao festival de voyeurismo e imbecilidade do Big Brother, ainda nos submete a participar de um coquetel de cenas desnecessárias, ou seja, repletas de luxúria, impróprias para menores. Quem assiste à minissérie está interessado em conhecer um pouco da história do Brasil, e não em apreciar cenas fora do contexto. É o mal do cinema brasileiro: se não tiver sexo, tem que abusar do palavrão, que fere o ouvido.
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Jornalista