O jornalista Carlos Lacerda, nascido no Rio de Janeiro mas registrado em Vassouras, cerca de 117 quilômetros da capital, continua a inspirar fascínio e curiosidade. Sua vida foi marcada por uma trajetória rica de acontecimentos que abalaram o país, com a queda de presidentes da República. Por muito pouco Kubitschek, cuja vida é contada na minissérie da TV Globo, JK, seria mais um deles. Fez tudo em nome de um sentimento travestido de exagerado nacionalismo, que mereceu confrontos graves. As posições assumidas, muitas vezes, intempestivamente, se revelam pela ótica de um teatro armado e repleto de ambigüidades. Não se afastava um milímetro do ponto de vista defendido.
Chamava os adversários para debates públicos, em praça ou através do rádio ou da televisão, e poucos apareciam. Pelos episódios nos quais se envolveu, podemos afirmar que nunca houve um jornalista igual, apesar das contradições. Foi único pelas características diferenciadas.
Provocador por excelência, polemista por natureza, impulsivo por instinto, líder indiscutível, estrategista ímpar na política por saber avançar, recuar e atacar tornou-se, sem dúvida, o grande nome do jornalismo brasileiro de todos os tempos. O que o distinguia era a extrema audácia, a capacidade de criar conflitos e a disposição de olhar os fantasmas dos inimigos em qualquer lugar ou imaginar que em todo movimento político que fugia ao seu controle havia barganha, imoralidade e intolerância.
Eis o mais puro e acabado perfil do polemista. A exemplo do jornalista Cipriano Barata (século 19), um recordista de prisões, nas quais escrevia seus ‘tijolos’, intitulados Da Guarita de… (o nome da cadeia), impostas por governos autocráticos ou acovardados com as palavras, sim, os dois, não se intimidavam com nada. Estavam, permanentemente, expondo a integridade física e a vida em busca de um ideal.
Enfim sem censura
Qual o dono de jornal que contrataria um jornalista como Lacerda concedendo-lhe ampla liberdade de expressão? Alguns lhe deram essa oportunidade, que não terminou bem. Ficou um certo tempo sem escrever em jornal. O último que lhe permitiu manifestar livremente as idéias foi o Correio da Manhã, do amigo Paulo Bittencourt, no qual criou a coluna Da Tribuna da Imprensa. Certo dia (1947), apontou os dardos venenosos à pessoa errada. Acertou num amigo que freqüentava a casa e a família do proprietário do veículo. Chamado a atenção, pediu as contas e procurou fundar o próprio jornal.
Ajudado por mulheres da sociedade que seguiam seus passos (pelo charme e inteligência), amigos e admiradores, vendeu sem dificuldade ações, que ultrapassaram as expectativas. Teve, ainda, uma ‘ajudazinha’, aliás, um empréstimo do Banco Real de Minas Gerais. Com tanta colaboração, colocou na rua a Tribuna da Imprensa em 27/12/1949. Nele permaneceu até 1960, dirigindo-o com mão de ferro.
Vinculado à UDN, agora Lacerda tinha um jornal para expressar suas opiniões, sem censura interna. O mesmo não aconteceu com os governos que criticou, os quais lhe impuseram em muitas ocasiões o toque de recolher. Eles conheciam a força dos ataques. Os inimigos que ficassem atentos. Lacerda retornaria sem medo e disposição. Acertaria as contas com os comunistas, com quem sentasse na cadeira de presidente da República, com generais, empresários que viviam de subsídios do governo e com os adversários de um modo geral. Do seu alcance não fugiriam nem os udenistas que contrariassem suas idéias e posições.
Insaciável nos ataques
Sobre Jânio Quadros, perguntado se o conhecia, respondeu: ‘Nunca vi um político brasileiro mentir tanto a tanta gente em tão pouco tempo’. Depois se lançou de corpo e alma a um acordo político, mesmo contrariando a orientação da presidência da UDN, para lançar Jânio à presidência da República. Como o ex-governador de São Paulo não seguiu a cartilha do partido, fez violenta campanha para afastá-lo. Não deu outra. O verbo agressivo não o perdoava e eis que Jânio, agora, não passava de ‘um paranóico’, de ‘um sinistro’, ‘um delirante virtuose da felonia’. O resultado o Brasil conhece.
O desafio de Lacerda não cessava e assim emitiu conceitos a respeito de mortos e vivos… Criticando Prestes, líder comunista: ‘Ele esqueceu o português e não chegou a aprender o russo’. Sobre Lênin, ‘um gênio degenerado’, e Carl Marx, ‘um deformador’. Kubitschek era um ‘cafajeste sem escrúpulos’, ‘um palhaço’ e com gravidade: ‘O governo Kubitschek é o mais corrupto de todos os que até hoje pilharam o país’. Colocou-se contra a criação de Brasília e a primeira missa rezada ali definiu como ‘ato sacrílego’. Teve que se explicar à Igreja. Lott, ministro da Guerra, não passava de ‘um general de espada virgem’, ao que o militar respondeu: ‘Deve ser tratado com compaixão, já que é um caso mental’ (…).
Insaciável nos ataques voltou os petardos contra figuras conhecidas de todo o país… O educador Anísio Teixeira ‘é um anti-semita desviado do seu curso’. Aos membros da família Vargas: ‘Aí estão de volta… triunfantes, audaciosos, infames e despudorados… tudo de cambulhada com os vermelhos, para, como os ratos, se atirarem sobre o Brasil…’. Sobre a eleição do general Dutra: ‘É votar com o fantasma de Adolf Hitler’. Depois de levar uma surra do coronel Guilherme A.T. Ribeiro, saiu com esta gozação: ‘O coronel quis provar que não é ladrão, agredindo-me no elevador do meu prédio. Não provou nada’.
Festival de verrinas
Com a mesma gana com que Carlos Frederico Werneck de Lacerda atacava, expunha-se. Transformava-se em alvo para os inimigos e vítima das suas violentas investidas. Muitos não economizavam insultos, os quais em certos momentos se assemelhavam à linguagem dos pasquins. O governador da Guanabara, Negrão de Lima, atacado violentamente pelo jornalista, não se conteve e deu uma resposta agressiva na qual deixou transparecer ódio e revolta, publicada no Ultima Hora em julho de 1958. Depois de considerá-lo um vil covarde, com uma conduta igual a de uma prostituta reles, disse:
(…) Ao miserável que tripudiou e enlameou o próprio pai e foi por isto considerado indigno da condição humana; ao ladrão que, segundo acusação pública não contestada, roubou na juventude dinheiro da revista de que era redator; ao traidor que delatou os companheiros de credo bolchevista e a si mesmo definiu como canalha, dominado por insofreável remorso; ao canalha que (…); ao chantagista e mercenário que (…); ao falsário que…; enfim ao desfibrado fujão de 24 de agosto [suicídio de Getúlio Vargas, 1954 e os gritos ‘morra Lacerda’] e de 11 de novembro [ntervenção das forças armadas liderada pelo general Lott, para manter a legalidade] e que em face ao desafio acima aludido, não foi capaz de defender o que há de mais caro para um homem de bem: a dignidade do próprio lar.
O Correio da Manhã, jornal no qual trabalhou, retratou-o como um simulador de paixões tumultuosas, portador de uma vaidade paranóica e de ‘uma crueldade que vai até a fúria assassina’. O jornal UH do inimigo Samuel Wainer o chamava de ‘Ladrão da rua Chile’, artéria à qual seria transferido o jornal Tribuna da Imprensa, por interesse público, com uma compensação considerada milionária, por parte da Prefeitura do Rio, pedida por CL. David Nasser, na revista O Cruzeiro, falando pelo dono, Chateaubriand, uma vez que Lacerda era amigo do novo desafeto: ‘Escravo de uma natureza mórbida, realmente nunca teve amigos’. Lacerda respondeu que amizade não é incomodar o amigo batendo na porta para levar-lhe ‘presentinhos’.
Nesse festival de verrinas havia quem afagasse o ego e manifestasse admiração e respeito por Lacerda, que, com Amaral Neto, foi um dos responsáveis pela criação do rebelde Clube da Lanterna, uma extensão da UDN, que provocou prisões, censuras e apreensão de jornais e revistas. Murilo Melo Filho, da revista Manchete, escreveu: ‘Nunca vi uma pessoa tão extremada e tão apaixonada pela vida. Tudo nele era grande: as qualidades e os defeitos. Idealista, com o entusiasmo próprio da juventude. Era tão absorvido com o seu trabalho na Tribuna que às vezes nem sequer ia em casa, dormia na redação, em cima de mesas forradas com jornais’.
Homem e mito
Eleito governador do antigo estado da Guanabara, deixou como substituto o filho, Sérgio, à frente da Tribuna de Imprensa. Depois vendeu o diário a Nascimento Brito, do Jornal do Brasil, passado às mãos de Hélio Fernandes, que conta como se deu a transação:
O Carlos vendeu a Tribuna para o Nascimento Brito em 1960-61, por dez milhões de dólares. O Lacerda ficou rico (…). O Nascimento Brito ficou um ano até que, em novembro de 62, o Miguel Lins, filho de um ministro do STF e que foi presidente do Supremo, me procurou. (…). Fomos almoçar e ele me disse ‘Hélio, o Nascimento Brito quer vender o jornal e ele acha que você pode se interessar’. (…) E eu respondi, sem dinheiro já estou interessado.
Em outra parte do depoimento Hélio Fernandes acrescenta que começou na Tribuna em 1962-63 e em março de 1964 veio o golpe militar e apareceram as dificuldades financeiras e os problemas com a sua cassação, a proibição de escrever e as prisões. Uma delas, junto com Carlos Lacerda. Bravo Hélio Fernandes, que não perdeu o compromisso assumido consigo mesmo, de ser contra governos e reagir sempre em defesa dos interesses do Brasil. Consciente da sua missão de jornalista, é um adepto da frase antológica do irmão Millôr, que considera genial: ‘Jornal é oposição, o resto é armazém de secos e molhados’.
Lacerda continua a despertar interesse, ainda mais agora, com a minissérie JK. As novas gerações não o conhecem. Todos os episódios que protagonizou terminaram envolvendo-o numa áurea que o transformou em lenda. Morreu o homem virou mito.
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Jornalista