Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

De volta ao passado

Sou de uma geração que viveu no século passado e me recordo das diversas manifestações em meio às pessoas, à imprensa, nas religiões, sobre a passagem que faríamos para um novo século que traria o máximo da evolução.

De fato. Os rituais de passagem de 1999 para 2000 trouxeram mais que um ano novo. A imprensa anunciou um novo tempo, as transformações da sociedade, o progresso. Cada um à sua maneira celebrou a chegada do futuro. Uns, com as tradicionais oferendas a Iemanjá; outros, pulando as sete ondas do mar; alguns apenas saboreando as tradicionais lentilhas para atrair a boa sorte; e outros soltaram fogos, brindando com champanhe.

Lançado em 1985, o filme De volta para o Futuro foi lembrado por toda imprensa nacional e estrangeira no último dia 21 de outubro. O filme tinha como protagonistas Marty McFly (Michael J. Fox) e o dr. Emmett Brown (Christopher Lloyd). No futuro criado pelo diretor Robert Zemeckis, no segundo filme da trilogia, carros voam, hologramas anunciam a estreia de Tubarão 19 nos cinemas, skates flutuam e tênis se ajustam sozinhos aos pés.

De tudo o que o filme antecipava sobre o tão aguardado futuro, pouca coisa tornou-se realidade, a não ser pelo advento mundial da internet. Essa, certamente, é a maior transformação que começou no século passado e colocou o mundo inteiro em conexão com a tal globalização.

A torre de Babel

Acreditava-se que, com tanta informação, conhecimento sobre a diversidade, culturas, línguas, povos… pudéssemos ter valores diferenciados, menos juízos de valor.

Mas o que realmente a história mostra, é que “nem tudo o que parece é”, ou melhor, referenciando o acontecimento, “nem tudo o que reluz é ouro”. O que houve nos anos seguintes, nos remete às páginas do Livro Sagrado mais lido no mundo, a Bíblia, que conta no livro de Gênesis, dos versículos 1 ao 9, no capítulo 11, a construção de uma torre – A Torre de Babel – que tinha a intenção de alcançar o céu até que pudessem falar com Deus.

Javé, o Deus hebraico, então, desce “para ver a cidade e a torre, que os filhos dos homens edificavam” e vendo o que faziam, decidiu confundir-lhes as línguas para impedir que prossigam com sua empreitada, dizendo “Vinde, desçamos e confundamos ali a sua linguagem, para que não entendam a linguagem um do outro.”

De volta para o passado

Em 2015 vários acontecimentos nos provam diariamente que fazemos o caminho inverso. Das coisas materiais podemos afirmar que o mundo evolui, mas a julgar pelo prisma humano, voltamos o século todo e mais um pouco. Xenofobia, homofobia, racismo, intolerância, juízos de valor e guerras religiosas dão o tom de que somos o elo perdido.

Politicamente, temos em pleno século 21 o Congresso mais reacionário desde a democratização do país e o que era um sonho tornou-se um pesadelo. Alavancada pelo segmento boi, bala e bíblia, a bancada evangélica apenas traduz com fidelidade a mentalidade da maioria que idolatra verdadeiros “deuses” da “moral” e dos bons costumes, fomentando o conceito da tradicional família brasileira. Temas como aborto, legalização da maconha, direitos LGBT, foram todos de volta para as mentes progressistas que sentem-se acuadas pela quantidade de tradições defendidas e manifestações escancaradas que a web promoveu.

O sangue derramado na ditadura era o início da libertação. Quantos “Chicos”, “Caetanos”, “Herzogs” e anônimos escreveram páginas numa das mais dolorosas passagens pela nossa história e – pelo menos os vivos – devem estar à base de rivotril vendo a geração Y pedir a militarização de volta. Resta saber se os livros de história ficaram na prateleira apenas por causa da má qualidade no ensino, ou se aliado à internet, nosso passado foi apagado. A imprensa tem sua alta parcela de culpa por não ter sido preparada para colocar a história dentro dos smartphones e reverenciar o factual com a necessidade de dar o “furo” tornando a notícia manipulável, fútil e na maioria das vezes, apenas ligada aos interesses financeiros.

Demoramos mais de 500 anos para saber a verdade sobre a colonização, tentarmos deglutir o amargo do fel, enterrar o passado e continuar. Ao contrário disso, colocamos os negros no tronco de volta, chicoteamos até a morte e achamos que isso é “justiça”. Deputados tentam criar leis proibindo o sutiã de bojo, mulheres devem parir filhos de estupradores, mas não entram no estatuto da família, e querem armar os “cidadãos de bem”, além de encarcerar os menores – mas só negros e pobres. O que mais pode dar errado?

Que “Deus” nos ajude!

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Damares Oliveira é jornalista