Na edição que lembrou a escalada da violência que culminou com a morte do jornalista Vladimir Herzog nos porões do DOI-CODI em São Paulo, este observador perguntou ao jornalista Audálio Dantas, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, indômito líder da cruzada que emocionou o país e apressou a redemocratização:
Por que razão aquela operação minuciosamente planejada pelo aparelho da repressão falhou tão redondamente? Deslanchada após a eleição de 15 de Novembro de 1974 (quando a ditadura foi espetacularmente repudiada pelo oposicionista MDB) quase um ano depois, em Outubro de 1975, na sua última fase 12 jornalistas foram presos em S. Paulo e barbaramente torturados. Um deles não resistiu aos tormentos e morreu – deslize, “acidente de trabalho”, desfecho roteirizado?
Sendo que dois jornalistas eram judeus por que assassinaram apenas um? Simplesmente porque o outro, Luiz Weiss, não foi preso no mesmo dia e a inesperada repercussão da morte do amigo Vlado Herzog obrigou os militares a mudar rapidamente seus procedimentos — não o levaram ao DOI-CODI, mas ao DOPS e depois libertado.
Trata-se de uma questão suscitada há pelo menos dez anos quando este observador reencontrou no seu arquivo um recorte do “New York Times” datado de 06.03.1975 com um despacho da sua então correspondente no Rio de Janeiro, Marvine Howe. Como a imprensa brasileira ainda não se beneficiara da distensão prometida pelo presidente Geisel e grande parte dela continuava amordaçada pela censura (ou pelo apoio ao regime), o título do jornalão americano chamou a atenção do observador (então residente em Manhattan):
“Informe da polícia política no Brasil vincula judeus ao Partido Comunista”
No lead, a bomba: “A polícia política [DOPS] de S. Paulo acusou o líder da maioria oposicionista da Assembleia Legislativa, deputado Alberto Goldman, de ter sido eleito com o apoio do “Setor Judaico” do Partido Comunista Brasileiro.”
A designação “Setor Judaico” — fiel tradução da sigla Yevsektsiya ou por extenso, Yevreiskaya Sektie, Seção Hebraica – foi utilizada com o consentimento do próprio Lenin (cuja avó materna era judia), em seguida à vitória da Revolução de Outubro (1918). Sua função de desjudaizar as massas judaicas espalhadas pela Rússia europeia mostrou-se desnecessária em 1929 quando Stalin a dissolveu e, em seguida, liquidou suas lideranças nos sucessivos expurgos dos anos 30 e 40 do século passado.
A adoção do funesto nome só poderia ter sido obra de um agente provocador devidamente treinado pelo aparelho da repressão. A própria Marvine Howe esclareceu no despacho que se tratava da primeira indicação publica da existência de uma tal Seção, o que deixou extremamente preocupada a comunidade judaica de cerca de 150 mil almas num país de 105 milhões de habitantes. A existência de uma “Seção Hebraica” seria a prova de que os órgãos de segurança se preparavam para atribuir grande importância ao núcleo judaico do PC brasileiro.
O informe do DOPS ainda mencionava um núcleo de 27 pessoas detidas em regime de prisão preventiva (nem Goldman ou Marcelo Gato, também apontado como beneficiário do apoio comunista, estavam incluídos em qualquer lista. Alguns haviam sido detidos há algumas semanas mas segundo a jornalista americana – este era o primeiro registro oficial da operação. Além deles o informe mencionava a existência de uma lista com 200 nomes de apoiadores do Partidão junto à comunidade a judaica. Alguns já teriam sido interrogados e faziam parte da alta burguesia paulistana incluindo empresários, acadêmicos e jornalistas. Leia a íntegra da reportagem de Marvine Howe aqui
As suspeitas da linha dura militar
Na preciosa pesquisa de Audálio Dantas publicada em “As duas guerras de Vlado Herzog (Civilização Brasileira, Rio, 2012) estão descritos os fatos que o informe do DOPS fazia prever. Inclusive no tocante à ofensiva contra o “comunismo judeu”.
A linha dura militar preparava-se para resistir à distensão “lenta, gradual e segura” proposta pelo arqui-inimigo Ernesto Geisel e aproveitou o triunfo eleitoral do MDB em novembro de 1974 para exibir a sua diabólica competência repressora. Para comprovar que a abertura política era prematura e perigosa seria preciso ressuscitar “o perigo vermelho” e tal como fez o exército em 1937, fabricou-se a lorota do Plano Cohen com evidentes ressonâncias judaicas para servir de justificativa ao golpe que implantou uma ditadura fascista no Estado Novo.
Depois de massacrar covardemente a direção do PC que condenava a luta armada e se engajara apenas na tarefa da redemocratização, a linha dura militar (encabeçada pelo Ministro da Guerra, Silvio Frota e o comandante do 2º Exército, Ednardo d’Avila Mello, partiu para a fase seguinte: comprovar que a imprensa era inconfiável, subversiva, infiltrada por jornalistas comunistas, alguns de origem judaica.
Herzog, diretor de jornalismo de uma emissora pública no estratégico estado de S. Paulo, era aparentemente o alvo preferencial. Sobretudo porque era apoiado pelo “comunista que falava russo”, o empresário José Mindlin, então Secretário Estadual de Cultura, a quem a TV Cultura respondia.
O despacho da correspondente Marvine Howe, do NYTimes, ganha inesperada grandeza. Comprova a importância dos papeizinhos que se guarda ao longo da vida e, quando menos se espera, torna-se tremendamente atual.
O livro de Audálio Dantas é um relato jornalístico assustador. Pelas barbaridades que recolheu, armou e descreveu, mas porque confirma plenamente a hipótese de que a tragédia que tirou a vida de Vlado Herzog não foi acidental, mas diabolicamente planejada.