Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

‘Eles formaram uma dupla que fez história’

A Folha de S.Paulo era uma grande empresa jornalística, muito bem administrada – esse era o forte de Octávio Frias de Oliveira – mas não tinha um grande jornal. Um de seus segredos era a distribuição no interior. A enorme frota de caminhões amarelos da Folha cobria o interior e voltava com mercadorias. O custo da distribuição era mínimo.

Naquela época, o jornal era muito compacto, apenas noticioso, e não tinha a tradicional página de opinião. Mesmo que alguns jornais fossem censurados ou autocensurados, a página de opinião tinha um sentido simbólico. Frias não era jornalista mas sempre gostou de rodear-se de grandes jornalistas. Cláudio Abramo foi o primeiro deles. Em seguida, houve momentos em que o jornal tinha entre seus colaboradores meia dúzia de ex-diretores de grandes jornais.

Lembro que quando Cláudio Abramo me convidou para trabalhar, eu não dava muita importância para a Folha. Dois anos antes, quando dirigia o Jornal do Brasil, lia obrigatoriamente o Estado de S.Paulo, não a Folha.

Cláudio Abramo havia saído do Estadão, Frias gostou dele, formaram uma dupla que fez história. Cláudio o convenceu de que o jornal precisava de conteúdo, opinião. Frias havia percebido que, naquele momento, o Estadão estava começando a ter problemas empresariais – havia investido uma fábula naquele prédio enorme (seguia o infeliz paradigma do JB) e ainda por cima meteu-se na aventura de tornar-se fabricante de papel. Frias entendeu que aquela era a sua oportunidade, havia uma brecha para fazer-se ouvir.

Na fase de Nabantino Ramos, o jornal colocava na rua três edições (Folha da Manhã, Folha da Tarde e Folha da Noite) e fazia um jornalismo de alto nível. Cláudio persuadiu o Frias a retomar o seu lugar como jornal de referência. Naquele momento o jornal só tinha um articulista – o chefe da sucursal de Brasília, Ruy Lopes – cujos textos eram publicados de forma aleatória, em qualquer página;

No início de 1975, Abramo viajou aos EUA para falar com jornalistas: o Antonio Marcos Pimenta Neves, que estava em Washington, não pôde aceitar o convite. Eu estava em Nova York no fim do meu contrato com a Universidade de Columbia e o Cláudio sabia disso. Pediu-me que, quando eu voltasse ao Brasil, procurasse a Folha e contou o que queria fazer: pretendia um jornal de peso, denso, inteligente, no estilo inglês (era fascinado pela imprensa britânica.).

Quando voltei ao Brasil, meses depois, evidentemente liguei para ele. Convidou-me para a chefia da sucursal do Rio de Janeiro e para escrever um artigo político diário. Ponderei que para escrever um artigo diário era necessária uma página de opinião. ‘É isso que precisamos fazer’ – e contou que Frias não queria imitar a página do Estadão, que publicava textos de opinião na página 3.

Quando Frias formalizou o convite em São Paulo, disse-lhe que para escrever um artigo político diário seria indispensável uma página determinada para abrigá-lo. O Cláudio deu uma piscadinha e o Frias disse: ‘Então, façam uma página de opinião’.

Descemos para a pequena sala do Cláudio e ele, que era um craque em matéria de desenho gráfico, começou a rabiscar – convém lembrar que além de grande jornalista ele era um artista plástico premiado). Dei alguns palpites (eu havia mexido anos antes na página de editoriais do JB) e a página ficou armada. Para diferenciar-se do Estadão, os editoriais ficariam na página 2. Com o Ruy Lopes, a minha coluna e a do Samuel Wainer.

A primeira pagina dois saiu no dia 26 de junho de 1975. Os textos eram sempre identificados pelas iniciais do autor, seguindo o modelo do Estadão. Antiqualha que serviu para situações muito engraçadas: quando alguém não gostava de um texto meu, eu dizia que fora escrito pelo querido Audálio Dantas…

Página 6

Importante registrar que o Cláudio não era diretor, nem editor-chefe. O cargo máximo da redação era ocupado pelo Boris Casoy (cuja origem profissional era o rádio), que teve o bom-senso de deixar que as coisas corressem à sua revelia.

No acerto com o Frias – embora mais velho, sempre tratei-o assim, pelo sobrenome, acho que seguindo o tratamento usado pelo Cláudio – sugeri que me permitisse cumprir com uma outra tarefa pela qual eu não cobraria um tostão a mais. Queria escrever uma coluna sobre imprensa às segundas-feiras, em alguma página perdida do último caderno. Lembro da sua reação: ‘Não se meta nisso, você só vai ganhar inimigos.’ (Parênteses: ele acertou na mosca. E como! Fecha parênteses.)

Lembrei que no meio do caso Watergate a imprensa americana começou a discutir abertamente a sua cobertura do escândalo, e que começada a distensão proposta pelo presidente Ernesto Geisel seria uma oportunidade para estimular a imprensa.

Aceitou. Mas na semana seguinte (dia 6 de julho de 1975) o ‘Jornal do Jornais’ não saiu na edição da segunda-feira, espremido no segundo caderno, como eu havia proposto: saiu gloriosamente no domingo, primeiro caderno, ocupando o meio da página 6 (onde hoje é publicada a coluna do Ombudsman). Decisão do Cláudio, decisão do Frias, decisão de uma dupla que fez história.

A força do coice

O jornalismo de opinião e combate foi invenção da imprensa alternativa, mas esta estava sob rigorosa censura (a Tribuna da Imprensa de Hélio Fernandes também). A Folha de certa forma colocou paletó e gravata no jornalismo alternativo. A presença do Tarso de Castro no ‘Folhetim’ fez a ponte entre a imprensa ‘udigrudi’ (underground) com a grande imprensa.

Octávio Frias percebeu que poderia capitalizar o respeito que tinha junto aos dirigentes do país para operar uma revolução. Como a maioria esmagadora dos jornais, a Folha apoiou o golpe militar de 1964. Agora, 11 anos depois, com Geisel e Golbery (e o amigo Severo Gomes no ministério), Frias percebeu que aquele era o momento para materializar a distensão. Cláudio, sempre politizado, falava em ‘condições históricas’. Estava certo, certíssimo. A partir de 26 de Junho de 1975, a Folha começou a falar, começou a ser ouvida. E fez muita diferença.

Muita coisa aconteceu naquele mesmo 1975. No ano seguinte veio a criação da página de artigos (a op-ed page dos jornais americanos), logo imitada por toda a imprensa. Depois veio o coice, o retrocesso de 1977, a greve dos jornalistas de 1979 e, no início dos anos 1980, o Projeto Folha.

Cada dia é uma efeméride, convém juntá-las. Para não esquecê-las. (Depoimento a Leticia Nunes)