“Ao grande jornal O Estado de S. Paulo, no qual tenho a honra e o prazer de colaborar desde sete anos, com toda independência de espírito, e onde todas as opiniões honestas, livremente emitidas e corajosamente defendidas, são acolhidas e respeitadas.” (Manuel de Oliveira Lima (1868-1938), diplomata brasileiro, em Formatión Historique de la Nationalité Brésilienne, livro publicado na França em 1911)
Não foi só aqui. Em toda parte, a virada do século 19 para o século 20 se deu em meio a terremotos nos modos de viver, na tecnologia, no capitalismo, no aparelho de Estado e, claro, na imprensa. Joseph Pulitzer anotou com nitidez a sensação dos que, como ele, atravessaram tantos solavancos em tão poucos anos. “Estamos todos embarcados, queiramos ou não, numa era que revoluciona o pensamento e a própria vida. O progresso avança impetuosamente com imensa aceleração, percorrendo em décadas avanços que antes demoravam séculos ou milênios.”
A frase faz parte de um precioso ensaio, The School of Journalism in Columbia University, de 1904, que propõe a criação de uma Escola de Jornalismo na universidade nova-iorquina. Apesar do brilho de suas palavras, brilho que se mantém intacto, o texto demorou a convencer os professores de Columbia. Pulitzer morreu em 1911, aos 64 anos, e a faculdade que pretendia fundar e para a qual tinha doado US$ 2 milhões ainda tardaria – só abriu as portas um ano depois, em 1912.
Joseph Pulitzer foi pioneiro em afirmar que os profissionais de imprensa deveriam ter uma formação acadêmica mais sólida, em nível de igualdade com os engenheiros, os médicos e os advogados. Tinha conhecimento de causa. Mais que um modernizador, foi um dos inventores da imprensa moderna. Em 1883, o imigrante nascido na cidade de Mako, hoje território húngaro, comprou nos Estados Unidos um jornal deficitário, o World, cuja tiragem diária era de 15 mil exemplares (não era tão pequena, mas não dava dinheiro). A partir daí, investiu numa fórmula sensacionalista de investigação jornalística (muckraking), o que lhe valeu a acusação de “jornalismo marrom” (yellow journalism), mas abriu caminho para o sucesso. Em quinze anos, levou a circulação diária do World – que tinha uma edição matinal e outra noturna, além de uma revista dominical com ilustrações coloridas magníficas – ao patamar de 1,5 milhão de cópias. Consagrou-se. Reinou na cidade de Nova York como um magnata poderoso e milionário. Mais velho, entregou-se ao sonho de levar a imprensa para a escola. Ao envelhecer, foi perdendo a visão. Morreu cego.
(Quem gosta de história dos jornais, vai apreciar o prefácio que Nicholson Baker assina em The World on Sunday, Bulfinch Press, New York, 2005, um raro coffee table book escrito com inteligência, que traz uma belíssima reimpressão das capas das edições dominicais do World no auge do jornal de Pulitzer.)
O maior adversário de Pulitzer foi William Randolph Hearst (1863-1951), dono do New York Journal e mais uma cadeia de publicações, e também adepto do yellow journalism. Foi político. Conseguiu ser parlamentar, mas, na primeira década do século 20, perdeu as principais eleições que disputou: para prefeito de Nova York e para governador. Ficou famoso como o inspirador do filme Cidadão Kane, de Orson Welles, de 1941, mas deveria ser visto também como referência do que Max Weber afirmou na conferência “A política como vocação”, proferida em 1919, sobre o jornalista. Weber ensina que o profissional de imprensa é a reencarnação moderna do “demagogo” grego (não no sentido negativo, de enganador, mas no sentido clássico: aquele que conduz o povo pela palavra). Foi nesse período que a imprensa se firmou como a arena central da esfera pública. Sem o jornal diário não teria havido sociedade civil, a modernização do Estado e a institucionalização da democracia.
Conflito vital
Hearst e Pulitzer ilustram como poucos a fisionomia do limiar do século 20, com as metrópoles crescendo para o alto e as páginas dos jornais se afirmando como arena central das controvérsias políticas. Os Estados Unidos talvez sejam a manifestação mais eloquente dessa regra geral. Aliás, os Estados Unidos brotaram das páginas da imprensa. Foi por meio de dois jornais (The Independent Journal e The New York Packet) que, entre 1787 e 1788, os chamados Federalist Papers (tidos por muitos estudiosos como a pedra fundamental das Ciências Políticas nos Estados Unidos) convenceram os cidadãos a ratificar o pacto federativo. Em resumo, sem a imprensa e sem os homens que a fizeram, a América não seria o que é.
E quanto ao Brasil? Não tivemos uma imprensa tão ativa, tão pujante quanto a americana. Em função disso, a interpretação que tem prevalecido é a de que, entre nós, o jornalismo veio mais ou menos a reboque do Estado e, até, pelo menos, meados do século 20, não foi protagonista de mais fôlego. Agora, o jornalista Jorge Caldeira acaba de lançar uma novidade. Autor de obras consagradas como Mauá, o Empresário do Império, trabalhou 15 anos e escreveu um estudo em quatro volumes, num total de 1740 páginas (sem contar os índices), para provar que o Brasil teve, sim, o seu grande inventor da imprensa moderna: Julio César Ferreira Mesquita (1862-1927). Um grande inventor da imprensa e, por decorrência, da democracia.
Caldeira encarou uma tese difícil – e deu conta de colocá-la de pé. Difícil porque a ideia de fincar o centro da narrativa histórica no cotidiano de uma redação de jornal está longe de ser uma trivialidade. A perspectiva adotada pelo autor se afasta da postura mais comum entre historiadores – e entre jornalistas que escrevem sobre história. Do mesmo modo, afasta-se de gêneros mais convencionais. Júlio Mesquita e seu Tempo não é bem uma biografia (ou é, mas, nela, os personagens, todos nomes de rua, estão quase sempre de terno e gravata, a não ser quando ficamos sabendo que o protagonista recusava pijama e preferia dormir de camisola). Também não é uma reportagem histórica sobre A Província de São Paulo, o diário que, depois da proclamação da República, em 1889, mudou de nome para O Estado de S. Paulo e virou uma potência sob o comando de Julio Mesquita.
Em lugar disso, o livro tem uma ambição mais alta. Conjuga o entrelaçamento dos muitos feixes que percorrem a história da cidade de São Paulo – e, em boa medida, do Brasil – numa mirada incomum. O narrador olha o mundo pelo ponto de vista do jornal de que fala e, a partir daí, passeia pelos gabinetes palacianos, pelas conspirações no Exército, pelas negociações assimétricas dos centros financeiros, as agonias da lavoura cafeeira, o despertar da indústria, as ferrovias emperradas, os partidos políticos, as guerras e as revoltas regionais. A história acontece no jornal.
Nessa abordagem, o autor consegue fazer com que a evolução (por vezes involutiva) do Estado espelhe as aventuras (ou desventuras) da sociedade, que os reveses da economia deságuem nos golpes da política, que o marasmo das instituições públicas sufoque as vozes da rua. A história é mediada pela imprensa.
Sem dúvida – sem a menor dúvida –, um deslocamento tão radical do ponto de vista do narrador histórico não há de ser indolor, assim como não há de ser à prova de contestações. Mas o resultado se impõe. Ao longo dos capítulos, o leitor vai se dando conta de que a construção da imprensa coincide com a criação da democracia e da República, numa constatação que vai muito além dos chavões liberais, que andam esvaziados de tão repetidos.
O marco não é apenas liberal, embora não possa ficar aquém do liberalismo. No Estado de Direito, independentemente das predileções programáticas de uma ala ou de outra, a instituição da imprensa constitui não um, mas o âmbito inescapável em que se dá a interlocução crítica entre o poder e a sociedade civil. Não se entenda o termo “instituição” como algo oficial ou estatal. Instituição, nesse caso, designa hábito social, aglutinação comunicativa dotada de regras próprias, que se mantém e se reproduz autonomamente. A imprensa não é a mera somatória dos jornais existentes, mas o lugar social gerado pelo debate informado dos temas de interesse comum entre os comuns, o lugar em que os cidadãos exercem a liberdade de expressão, disputam opiniões e buscam o atendimento radical do seu direito à informação. A instituição da imprensa, por pior que seja, tende à liberdade, enquanto o Estado, por melhor que seja, tende a enquadrá-la. Desse conflito vital depende a materialidade dos nossos direitos.
Vulto maior
Julio Mesquita talvez olhasse adiante do tempo em que viveu. Quanto a isso, Caldeira conta que seu biografado foi bastante precoce. Alfabetizado aos três anos de idade, aos 15 já estava na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Começou a trabalhar com jornal logo cedo. Aos 26, foi para A Província de S. Paulo, que era um pequeno diário republicano de quatro páginas, com apenas 904 assinantes. Quando morreu, O Estado de S. Paulo circulava aos domingos com 32 páginas (16 nos dias de semana) e uma carteira de 48.638 assinantes. Em 1923, o faturamento alcançou os 7 mil contos de réis, um montante “maior do que as receitas de dez dos vinte estados brasileiros” da época (volume 3, p. 425).
Além de jornalista, Julio Mesquita foi político. Ingressou nas fileiras do Partido Republicano e foi parlamentar. Dele, não se pode dizer que frequentava o poder, mas o contrário: era o poder quem o frequentava, em seu jornal e em sua casa, como o livro documenta fartamente.
É claro que poderia haver, nessa dupla militância (de jornalista e político), um conflito de interesses nada desprezível. No entanto, nos momentos de dilema, o dono do jornal escolhia o jornalismo. Em vez de propaganda (que não deixou de fazer), preferiu levar informação objetiva e bem escrita aos leitores. Foi assim que plantou no Brasil os fundamentos da imprensa moderna. Precursor nas inovações tecnológicas (eletricidade, telégrafo, fotografia, rotativas), dedicou-se com mais vigor à implantação das técnicas jornalísticas fundadas na objetividade factual e na liberdade de opinião.
É interessante registrar aqui mais um paralelo com a cena da imprensa nos Estados Unidos. Enquanto Julio Mesquita buscava mais independência para o seu jornal, em São Paulo, o americano Adolph Ochs (1858-1935) era um nome em ascensão em Nova York. Ochs também tinha sabido livrar o negócio da imprensa das querelas partidárias. Em 1896, comprara um diário modesto, The New York Times, que não tirava mais do que 9 mil cópias por dia. Sabia onde estava investindo. Tinha um método sóbrio de separar as coisas (opinião de um lado, informação, de outro; reportagem para cá, publicidade para lá; jornalismo para dentro da redação, política para fora). Não fazia concessões ao sensacionalismo, ao yellow journalism. No final da Primeira Guerra, o seu jornal já batia a marca de 250 mil cópias e, na década de 20, começava a esbanjar prestígio e influência. Alcançaria os 750 mil aos domingos na década seguinte. O jornalismo, tanto lá como aqui, estava aprendendo que, para triunfar, não podia se render à vontade dos partidos. Tinha de saber conversar com o poder, por certo, mas sempre com um pé atrás. De olho no poder, mas longe dele. Melhor para a democracia – e para a imprensa.
Melhor ainda para o pluralismo. Que o diga o recifense Manuel de Oliveira Lima, que serve de epígrafe a essa resenha. Monarquista declarado, frequentou as páginas do Estado ao lado de gente que pensava o oposto, como Euclides da Cunha, que se encantou por Marx. O diplomata tinha razão. Jorge Caldeira também tem. Na história da imprensa brasileira – e da República – Julio de Mesquita é um vulto maior do que supúnhamos.
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Eugênio Bucci é jornalista, professor da ECA-USP