Lisboa, 25 de abril de 1974. ‘Eclodiu esta madrugada no país um movimento militar’, dizia a primeira frase da matéria principal do jornal A Capital. O subtítulo alardeava um ‘apelo à calma e ao civismo’.
O Diário de Notícias do mesmo dia anunciava que ‘o Rádio Clube Português começou a emitir comunicados, a espaços regulares, em nome do ‘Posto de Comando do Movimento Militar’. O locutor anunciava que ‘as Forças Armadas tinham iniciado uma série de acções que visavam libertar o país do regime há longos anos no Poder’’.
‘Gritos de entusiasmo, flores, cânticos e milhares de pessoas saudando os militares que desfilaram pelas ruas’, completava o Diário de Lisboa, resumindo o clima vivido na capital portuguesa.
Há 30 anos, Portugal saía de quase meio século de um regime fascista imposto pelo ditador António de Oliveira Salazar. Derrotada pelo Movimento das Forças Armadas (MFA), a longa, estruturada e repressiva ditadura – que havia sobrevivido à morte de seu próprio ditador, em 1970 – ruiu pacificamente. Sem derramamento de sangue ou grandes manifestações de violência, a democracia voltou ao país.
Os incidentes noticiados pelos jornais davam conta de carros parados nas ruas, tanques do Exército a postos, aeroportos fechados e pequenos tumultos, como o reportado por A Capital:
‘Segundo nos informou, esta manhã, um porta-voz do ‘Movimento das Forças Armadas’ que ocupava o local, registou-se um incidente entre um carro patrulha da PSP e elementos daquele movimento. Na ocasião foi disparado, pelos militares, uma rajada para o ar’.
Flores e liberdade
O episódio de 25 de abril de 1974 ficou conhecido como Revolução dos Cravos. A transição pacífica do regime ditatorial para a democracia marcou a vida de Portugal e traz consigo uma espécie de aura encantada – o nome da revolução está ligado ao aparecimento de cravos vermelhos nas mãos da população e nos canos dos fuzis dos soldados.
A festa e a reconquista da liberdade foi invejada por outros países que ainda encontravam-se dominados pela ditadura. No Brasil, o sentimento foi sintetizado por Chico Buarque de Hollanda na música Tanto Mar.
‘Sei que estás em festa, pá / Fico contente / E enquanto estou ausente / Guarda um cravo pra mim. / Eu queria estar na festa, pá / Com a tua gente / E colher pessoalmente / Uma flor do teu jardim’.
Não é preciso dizer que a letra da canção foi censurada por aqui.
Em Portugal, o fim de um regime marcado pela censura brutal das opiniões discordantes e pela repressão dos seus opositores foi comemorado pela imprensa. ‘Não caberiam nos jornais de um mês, sequer nos de um ano inteiro, todos os artigos ou notícias que a Censura (…) nos impediu de publicar’, desabafava o jornal República em editorial, completando que ‘era-lhe impossível avaliar com exactidão até que extremos ia a acção dos serviços encarregados de amordaçar a Imprensa, cuja prepotência se fazia sentir, indiscriminadamente, sobre os mais variados assuntos, inclusive naqueles acerca dos quais era totalmente imprevisível a sua actuação’.
O jornalista Clóvis Rossi, hoje colunista da Folha de S. Paulo, à época trabalhava para O Estado de S. Paulo e cobriu a Revolução. ‘Foi um choque para mim. Eu não estava preparado para uma cobertura dessas. Portugal saíra completamente do mapa jornalístico durante a ditadura. E, na escola, só se aprende algo de Portugal até a independência do Brasil, 150 anos antes da Revolução dos Cravos’, diz. ‘Achei-me, a princípio, um irresponsável por ter me disposto a cobrir algo sobre o que estava pessimamente informado. Depois, passei a achar-me um irresponsável com uma sorte tremenda, porque encontrei um monte de fontes que se revelaram confiáveis, bem informadas e, ainda por cima, dispostas a conversar, às vezes longamente, a respeito.’. Rossi afirma que a revolução ‘foi um evento delicioso de cobrir pelas características anárquicas do período’.
Fascismo e guerra
A ditadura em Portugal começou em 1926, com um golpe de Estado que dissolveu as instituições democráticas e partidos políticos do país. Sua ruína deu-se quase 50 anos depois, fruto da revolta da população, cansada do regime fascista, e do Movimento das Forças Armadas, formado basicamente por jovens oficiais militares cansados da guerra contra os movimentos de libertação das colônias portuguesas na África.
O auge da revolta, no 25 de abril, terminou com a derrubada do governo ditatorial e o exílio, no Brasil, do então primeiro-ministro Marcello Caetano – que sucedeu Salazar após sua morte. Portugal, na época um dos mais atrasados países da Europa, ganhou destaque internacional e começou um processo de modernização e reinserção no cenário político e econômico europeu.
Porém, o momento revolucionário de Portugal durou muito mais que apenas um dia. Depois da Revolução dos Cravos, o país enfrentou um longo período de instabilidade política e econômica, com civis e militares disputando diferentes rumos para o país. Trinta anos depois a Revolução ainda divide opiniões, mas o saldo parece ter sido positivo. ‘Portugal é outro país hoje. Antes era cinza, triste, chato. Agora é vivo, alegre, expansivo’, diz Clóvis Rossi.
Nas últimas semanas, os principais jornais de Portugal produziram longos dossiês sobre a Revolução, com a reprodução de reportagens, documentos, ensaios e artigos relacionados ao tema. O jornal Público lançou também uma coleção de CDs, DVDs e CD-ROMs em comemoração aos 30 anos do 25 de abril. No último domingo, aniversário do movimento, o Diário de Notícias estampou em sua primeira página a palavra ‘Liberdade’ e o desenho de um cravo vermelho.