Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Gustavo Lacerda, o criador da ABI

O jornalismo, entre nós,  não é uma profissão: ou é eito, ou é escada para galgar posições” (Gustavo de Lacerda)

As transformações tecnológicas, que foram surgindo nas primeiras décadas do século 20, marcaram a transição de uma imprensa artesanal para uma imprensa de cunho empresarial. Dentro da ótica capitalista, o jornalismo passou a ser visto como importante fonte de investimento. A valorização dos periódicos (jornais e revistas) está ligada à nova temporalidade de uma sociedade que adentrou o novo século, no qual o binômio, composto pelas palavras modernidade e progresso, era a tônica. O telégrafo, aliado a novas técnicas de impressão, possibilitou uma maior tiragem do jornal, mantendo a qualidade na produção. Havia uma demanda no mercado por informação, cada vez mais rápida, acerca dos fatos que ocorriam no Brasil e no mundo. Tempos modernos…

É neste contexto de transformações socioeconômicas que despontará um jornalista mulato e pobre: Gustavo de Lacerda (1854-1909). Este foi responsável, em 7 de abril de 1908, pela criação da Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Já no distante ano de 1858, havia ocorrido a primeira greve dos tipógrafos no Rio de Janeiro, combatendo as injustiças patronais e os baixos salários. Nos primórdios da história do movimento sindical, o pioneirismo de uma greve nasceu no âmago da classe trabalhadora ligada à imprensa.

Um destino de luta

Em 18 de maio de 1854 nasceu Gustavo Adolfo Braga, em Nossa Senhora do Desterro, atual Florianópolis (SC). Seu sobrenome foi substituído por Lacerda, aos 22 anos, quando teve permissão do Exército para efetivar a troca. Ingressando nas Forças Armadas em 8 de março 1870, chegou a conquistar o posto de segundo-sargento. Na Escola Militar de sua cidade, exerceu a função de secretário do general Tibúrcio de Sousa, que, ao perceber a sua inteligência, incentivou-o a estudar. Por divulgar os seus conhecimentos sobre o socialismo entre os colegas de carreira, foi desligado, em 1871, de suas atividades militares.

Autodidata, dominava o idioma português e escrevia com desenvoltura. Gustavo de Lacerda iniciou, também, estudos em francês, tendo acesso a livros que circulavam, entre amigos, sobre as ideias socialistas. Em 1875, mudou-se para o Rio de Janeiro, porém regressaria a Santa Catarina, ingressando mais uma vez no Exército, onde permaneceu até 1881.

O jornalista

Buscando uma oportunidade de emprego em Santos (SP), trabalhou como guarda-livros. Ao retornar ao Rio de Janeiro, em 1º de janeiro de 1884, lançou o primeiro número do seu jornal o Meio Dia. Neste periódico, ele se denominou republicano independente e apartidário: “Os partidos não têm programas nem princípios, menos ideias e união – só têm chapas”. O jornal teve existência efêmera e não chegou a completar um mês de circulação.

Completamente falido e sem condições de sobrevivência, ele aceitou o emprego de repórter de setor no jornal O Paíz (1884-1934). Neste periódico, Gustavo de Lacerda trabalharia até falecer.

Em suas atividades como jornalista, Gustavo de Lacerda, ao mesmo tempo, foi repórter e revisor do jornal A Imprensa, de Rui Barbosa (1849-1923), e durante o governo do presidente Campos Sales (1898-1902) trabalhou também, no Jornal do Brasil.

Ao ocorrer uma greve de carroceiros, ele publicou uma reportagem a favor dos grevistas, resultando num atentado a tiros. O Jornal do Brasil, em seu editorial, acusou o ministro da Justiça, Epitácio Pessoa (1865- 1942), de ser o mandante: “… Dois encostados da polícia atiraram para matar no nosso repórter Gustavo de Lacerda, na Ladeira do Castro, que denunciou as violências praticadas por ordem do governo contra carroceiros em greve”. De acordo com Nelson Werneck Sodré, “Gustavo de Lacerda, repórter ousado, ganhava notoriedade antes gozada por Ernesto Sena, do Jornal do Comércio, capaz de operar prodígios em busca da informação”.

João Melo descreve Gustavo de Lacerda, como “mulato comprido e alto, indivíduo nervoso, de aparência gasta e mal vestido; passo tardo e bigode caído; modesto de posses e por temperamento animado, porém, da ideia obsessiva de arregimentar os que trabalhavam na imprensa”. E segue: “Pouco conhecido (…) o repórter exato em suas obrigações e correto narrador dos eventos de cuja divulgação se encarregou, era visto como um agitador e não como um jornalista (…) cumpridor dos deveres de sua profissão. É que lhe sabiam o pendor político.” Estas opiniões sobre o criador da ABI encontram-se na terceira edição do livro História da Imprensa no Brasil (1983), de Nelson W. Sodré, na pág. 310.

O livro de Edmar Morel

O jornalista Edmar Morel (1912-1989), em seu livro, A trincheira da liberdade (1985), apresenta Gustavo de Lacerda, como uma figura “entregue de corpo e alma ao jornalismo, profissão que exerceu como um sacerdócio, embora explorado torpemente”. O jornalista registra, em sua obra, que a ideia de criar uma agremiação, para lutar pelos direitos da classe jornalística, foi a meta principal da vida de Lacerda, que chegou a ser visto como inculto e visionário. Esta imagem negativa, em relação à sua figura, era difundida, principalmente, pelos proprietários de jornais que, na época, percebiam, em Gustavo de Lacerda, um líder que ia de encontro aos privilégios de casta. Estas inverdades acerca da figura de Lacerda dissipam-se quando lemos o programa de fundação da ABI (1908), do qual constam reivindicações que até hoje são a base da regulamentação profissional e das faculdades de Comunicação Social, demonstrando, assim, a coerência e o vanguardismo de suas ideias.

De acordo com o escritor Edmar Morel, a miséria “dourada”, que era vivenciada pelos profissionais da imprensa, no início do século, contribuiu para que Gustavo de Lacerda não desistisse da sua luta em prol da formação de uma associação que defendesse os direitos sem distinção de categorias. Gustavo de Lacerda, socialista convicto, batalhava por condições dignas para os trabalhadores do universo da imprensa, incluindo todos os envolvidos desde a elaboração até a impressão do jornal. Ele denominava os jornalistas de “proletários intelectuais”.

Adepto das ideias socialistas, segundo Fernando Segismundo “de um socialismo um tanto confuso, resultado de leituras desiguais, porém praticado com o nobre desígnio de suavizar a sorte dos trabalhadores”, Lacerda teve bastante dificuldade em conquistar apoio entre os colegas das redações. Após a proclamação da República (1889), de acordo com o escritor Evaristo de Moraes Filho, surgiram os primeiros partidos de cunho socialista e operário, mais de cunho reformista do que, propriamente, revolucionário.

A militância

No ano de 1890, sem abandonar as redações do jornal O Paíz e do Jornal do Brasil, Gustavo de Lacerda se inseriu na imprensa operária, sendo um dos redatores de A Voz do Povo e depois de O Eco Popular, ambos jornais efêmeros.

No ano de 1892, ele se associou ao Centro Operário Radical e escreveu sobre vários temas, como a reforma agrária, o combate aos monopólios e privilégios, a redução das horas de trabalho para os menores de idade, a fiscalização das condições de higiene nos locais de trabalho e nas instalações operárias, a gratuidade da justiça, a assistência patronal nos casos de acidentes e doenças contraídas no trabalho; além de idealizar uma instituição de profissionais da imprensa que lutou, infatigavelmente, até vê-la fundada.

Gustavo de Lacerda teve contato com movimentos sindicais de vários países, a exemplo da Itália, Alemanha, França e Inglaterra, graças a seu colega de jornal Dunshee de Abranches. Segundo este, “no seu original idealismo socialista, [Lacerda] não concebia o jornal como empresa industrial ou mercantil ou sociedade anônima, dando lucro a seus acionistas. O jornal, dada a sua alta e sagrada missão social, deveria ser uma cooperativa de cujos interesses participassem todos os seus membros, desde os diretores até os seus mais modestos colaboradores”.

No Rio Grande do Sul, ocorreu a primeira experiência cooperativista com a criação do periódico Coojornal, que teve início como um boletim, em 1975, transformando-se, em outubro de 1976, num jornal. Fundado por uma cooperativa de jornalistas, era expedido para o Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e mais dez estados brasileiros. Encerrou sua circulação em 1982. O Museu da Comunicação Hipólito José da Costa, fundado, em Porto Alegre, em 10 de setembro de 1974, guarda e viabiliza à pesquisa esta importante coleção. Esta forma de fazer jornalismo já era idealizada por Gustavo de Lacerda na primeira década do século 20.

No ano de 1901, ele publicou uma pequena obra, cujo título era O problema operário no Brasil, tendo como subtítulo Propaganda socialista. Afonso Arinos (1905-1990) conceituava a posição de Gustavo de Lacerda entre o socialismo de Blanqui e o de Tolstoi, demostrando que o jornalista havia compreendido a necessidade de desprendimento do operariado brasileiro da tradição anarquista. No dia 28 de agosto de 1902, foi fundado, no Rio de Janeiro, o Partido Socialista Coletivista, tendo à frente Vicente de Sousa e Gustavo de Lacerda.

Gustavo de Lacerda trabalhou ao lado de Artur Azevedo, Pardal Mallet, José do Patrocínio, entre outros nomes que admiravam o seu lado profissional. É indiscutível o talento e a capacidade desse jornalista, restando-nos concluir que o mesmo não conquistou uma posição de destaque social devido ao preconceito dos donos de jornais em relação à sua postura política de combater a exploração da mão-de-obra e a desigualdade social.

A criação da ABI

No dia 7 de abril de 1908, num sábado ensolarado, à tarde, numa sala do terceiro pavimento do jornal O Paíz, foi criada a Associação de Imprensa, mais tarde Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Nossa imprensa, naquele ano, comemorava seu centenário de fundação (1808-1908). A ABI foi incisivamente combatida pelos donos de jornais, que não viam com “bons olhos” a figura de Gustavo de Lacerda. De acordo com Nelson W. Sodré, os donos de jornais se referiam à Associação Brasileira de Imprensa de forma depreciativa: “Aquilo é um grupo de malandros chefiados por um anarquista perigoso…”

Embora tenham sido convocados os jornalistas e representantes de jornais para o ato de fundação, compareceram apenas nove. Gustavo de Lacerda foi eleito presidente e redigiu o estatuto da nova entidade. Baseado no modelo francês, a Associação deveria manter uma caixa de pensões e auxílios para os sócios e suas respectivas famílias, um serviço de assistência médica e farmacêutica, um retiro com enfermaria e residência para velhos e enfermos, biblioteca, salão de conferências e diversões além de abrir espaço por meio de titulação de capacidade intelectual e moral para o aspirante à profissão de jornalista.

A ABI esteve instalada, por um período, na sobreloja do jornal O Paíz. Entre 1908 a 1942, teve sete sedes, inclusive, uma delas de favor no quartel da Polícia Militar. As leis municipais de 1921 e 1922, que não foram cumpridas, acabaram por conceder um terreno para a construção da sua sede própria, em 1932, efetivada por Pedro Ernesto.

Getúlio Vargas e a ABI

Importante que nos lembremos de que a ABI teve seu patrimônio enriquecido, tornando-se uma entidade respeitada no período ditatorial do Estado Novo (1937-1945), criado por Getúlio Vargas (1882-1954), que investiu alguns milhões de cruzeiros para recuperar a Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Quatro milhões foram destinados para a edificação da sede da Esplanada do Castelo. Neste local, ele esteve, em 1931, quando foi proclamado presidente de honra da entidade. Em seu discurso, Getúlio Vargas se referiu à classe dos jornalistas, como “desprotegida, relegada e esquecida e desejou que a ABI se transformasse num centro de estudos e de cultura, numa oficina de trabalho em proveito da comunhão nacional”.

Getúlio Vargas, em 1936, foi considerado sócio benemérito da entidade e, em 1938, assinou a lei reguladora do trabalho dos jornalistas profissionais. Em 1942, o presidente visitou a sede nova no final das obras. Em 1944, novamente, a ABI o recebeu para a inauguração do busto de Pedro Ernesto. Na ocasião, em seu discurso, proferiu que a imprensa, no início do século, “caracterizava-se como uma semi-profissão de homens inteligentes e desorganizados, oscilando entre a boemia e o aluguel das aptidões intelectuais, a dedicação extrema ao bem público e os arranjos dos bastidores públicos”. O presidente voltaria à sede da ABI em 1952 pela última vez.

A missão

Passados dezessete meses da criação da ABI, em 4 setembro de 1909, aos 55 anos, Gustavo de Lacerda morreu, como indigente, na Santa Casa de Misericórdia, legando-nos a razão maior da sua luta: a criação de uma instituição cujos objetivos principais são dar apoio à organização profissional dos jornalistas e defender as liberdades públicas, lutando pelas nobres causas nacionais. Ele é patrono da cadeira 14 da Academia Catarinense de Letras.

A criação da ABI foi ao encontro dos jornalistas brasileiros com ideais de solidariedade corporativa, ação coletiva e, principalmente, a visão de que a imprensa cumpre um papel fundamental, pois é responsável, também, pela valorização da cidadania, promovendo a luta em prol da liberdade de expressão. Que os ideais de Gustavo de Lacerda (1854-1909), pautados por justiça social, possam nortear a nossa sociedade, cujas feridas abertas, desde o período do Brasil Colônia, ainda, sangram. Que sua luta persistente contra a desigualdade e a exploração dos poderosos, embora anônima para muitos brasileiros, sirva de exemplo no processo de construção de uma sociedade mais justa e fraterna.

Bibliografia

MARÇAL, João Batista. Um Século de Socialismo no Pampa. Porto Alegre: Cia. Rio-grandense de Artes Gráficas (Corag), 1999.

MIRANDA, Marcia Eckert; LEITE, Carlos Roberto Saraiva da Costa. Jornais raros do Musecom: 1808-1924. Porto Alegre: Comunicação Impressa, 2008.

SEGISMUNDO, Fernando. Imprensa Brasileira. Vultos e problemas. Rio, 1962.

SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora Ltda., 1983.

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Carlos Roberto Saraiva da Costa Leite é pesquisador e coordenador do Setor de Imprensa do Musecom