Infelizmente não me recordo do nome daquele herói. Era repórter de uma rádio de Belo Horizonte. Rosto redondo, quase inchado, e tez em lusco-fusco entre o pálido e o verde. Andou em minha direção curvado ao meio. Sabia que eu era um concorrente, por isto, avisou:
– Já dei o furo!
Ele não disse, mas eu intuí: o furo era a internação de Tancredo Neves naquele hospital, horas antes de tomar posse na Presidência da República. Um acontecimento tão estranho que não me deu espaço para pensar na razão de um colega andar por ali em pose de corcunda de Notre Dame.
Muito mais tarde, durante a madrugada, é que o próprio, já ereto, se explicaria. Entrara naquele hospital por volta das 20h30 não como repórter, mas como paciente. Passara mal com uma macarronada que comera logo após a cobertura da missa com a presença do presidente eleito, na Igreja Dom Bosco.
Enquanto a maca em que estava deitado era empurrada com displicência por um enfermeiro, ouviu vozes exaltadas pedindo um abre-alas. Olhou para o lado e viu, numa maca emparelhada, um senhor com a calva e o nariz inconfundíveis do presidente. Precipitou-se para o chão e retrocedeu à portaria em busca de um telefone, pulando como um pinto no lixo.
‘Tudo definido’
O furo aos que são de furos. Não era o meu caso naquele ano, repórter que era da revista IstoÉ, em processo de fechamento naquela noite de 14 de março de 1985, para circular no sábado, 16. Não precisava do furo, mas tinha poucas horas para entender e traduzir para o leitor o inesperado e todas suas implicações médicas e políticas.
Não me interessava o furo, mas foi sua adrenalina e a sorte que me fizeram ser um dos primeiros repórteres a chegar ao hospital, antes da polícia e de muitos dos 41 membros da Nova República que assistiriam à primeira das sete cirurgias a que foi submetido o presidente – ‘trepados até em banquinhos’, como lembrava a irmã de Tancredo, a freira Éster.
A sorte levou-me a combinar um chope para aquele noite com um médico sobrinho do presidente, Luiz Antônio, e com o diretor da Rádio São João Del Rey, Weber Neder Issa. Deixara a sucursal da revista perto das 20h30, após uma discussão com o diretor Mário Almeida.
Passara o dia tentando fechar antecipadamente a matéria da posse. Conseguira o discurso a ser pronunciado pelo presidente e com outros colegas montara o passo-a- passo da cerimônia, com informações fornecidas pelo Planalto e Itamaraty. Como normalmente a revista fechava na madrugada de quinta para sexta, quis surpreender a direção apresentando a matéria pronta, com a descrição provável do que ainda estava por acontecer.
Defendi a idéia de rodarmos as páginas do miolo da matéria, deixando aberta a primeira, que acolheria a foto principal da solenidade, e a última para um box destinado a cenas pitorescas.
Mário ligou-me por volta das 20h:
– Inácio, é temerário o que você está sugerindo e se acontece alguma mudança de cena?
– Não vai acontecer, Mário. Está tudo definido com precisão militar.
– Mas tem coisas que os militares não controlam. E se o Tancredo escorregar na rampa, quebrar um dedo…. Não, Inácio, eu não vou bancar este risco. Vamos atrasar o fechamento.
Cheiro de éter
Cheguei ao bar ainda com um travo de decepção pelo meu esforço sem reconhecimento. Na mesa, apenas o Weber.
– Cadê o Luiz Antônio?
– Teve um pequeno imprevisto. Quando saíamos para cá a Dona Zininha (outra irmã do presidente) ligou e pediu que ele acompanhasse o Tancredo até um hospital para fazer um exame de sangue.
– O quê???
Weber surpreendeu-se com o meu espanto e a ansiedade com que passei a procurar um telefone.
– Calma Inácio. É só um exame de sangue. O Luiz Antônio chega logo.
Do restaurante liguei para a sucursal. Os que estavam por lá entraram em êxtase. Eu não conhecia Brasília e não sabia em que hospital procurar. A chefe da sucursal, Mariângela Hamu, sugeriu que eu voltasse à sucursal, enquanto ela providenciava um rastreamento.
Quando cheguei, não haviam certezas. Eu e Paulo Fona resolvemos tentar o Hospital de Base, a 500 metros de onde estávamos. Fomos correndo pelas ruas do Setor Comercial Sul. Parei ao encontrar o repórter corcunda e logo forcei a passagem corredor adentro, tentando passar a impressão de estar acompanhando o ministro Fazenda, Francisco Dornelles, e o secretário de Tancredo no governo de Minas, Ronan Tito, que entravam.
Descemos numa rampa em zigue-zague e quando perguntávamos pelo local onde estava o presidente, médicos e funcionários nos fitavam com espanto. A notícia ainda não havia se espalhado.
Lembro-me de chegarmos a uma sala onde já havia políticos e um cheiro fraco e persistente de éter. Pensei ser uma sala de espera, mas logo dei-me conta de tratar-se do próprio centro cirúrgico e de que aquelas pessoas de terno, se apertando numa única direção, estavam tentando ver o presidente, deitado alguns metros à frente.
A minha aventura terminou ali. Álvaro Azeredo, da assessoria particular o presidente, pediu que me retirasse. Protestei, alegando que era apenas um entre tantos. Mas ele lembrou-me que os tantos eram ministros e eu, um jornalista.
Quando retornei ao saguão do prédio, o cenário era outro. Seguranças tentavam manter as portas do pronto-socorro cerradas, abrindo-as somente para políticos identificáveis e acidentados com dor reconhecível. Do lado de fora, a imprensa e estranhos personagens fugidos da festa do Itamaraty: homens de smoking e mulheres de longos vermelhos, verdes, prata e saltos que ameaçavam partir-se contra os buracos do mal conservado passeio do hospital.
Nos dois orelhões em frente ao prédio, formaram-se filas de repórteres excitados para falar com suas redações. Entrei em uma delas e na minha vez passei o relato para sucursal. Nenhum de nós deu importância para o tumulto que eu havia presenciado no centro cirúrgico. O importante era o estado de saúde do presidente e da democracia. O abalo que as más práticas médicas poderiam causar nesses baluartes somente passariam a ter importância dias depois. Ainda aproveitei para ligar para o Mário Almeida e saúda-lo: ‘Bidú!’
Até hoje tenho a memória olfativa do éter que respirei naqueles dias de Hospital de Base. Quando o presidente foi transferido para o Incor, nós, os repórteres, não mais tivemos acesso ao hospital. Ficávamos num auditório, em frente.
Vaidade de branco
Muito publiquei do que vi e ouvi, mas três coisas escaparam.
No dia da transferência do presidente para o Incor, visitei o Hospital de Base para fazer um rescaldo. Naquela tarde, conversando com faxineiros encarregados da limpeza dos apartamentos, descobri a grande hemorragia sofrida pelo presidente. ‘Os panos ficavam ensopados e tivemos de trazer baldes’, disse um faxineiro, dando-me a frase útil para provocar uma confirmação médica. Que obtive.
Nessas andanças, em que conversava aleatoriamente com quem cruzasse comigo, tive a grata oportunidade de conhecer o capelão do hospital, um italiano sessentão, de cabeleira branca. Novarino Brusco disse-me:
– Eu não entendo o seu presidente. Se como dizem, é tão astuto, como veio se internar neste hospital? Primeiro é um hospital público, com o corpo médico nomeado pelo governo que sai. Como aqui é uma cidade de políticos, é ingenuidade admitir que a seleção para os cargos de comando seja muito criteriosa. E, por deverem favores de nomeação ou preservação, também é duvidoso que os nossos médicos possam manter segredos sobre o estado de saúde de um homem, que, por vivo ou por morto, alterará substancialmente a carreira de muitos homens públicos.
Na semana seguinte ao enterro de Tancredo, eu estava no Rio com a freira Éster e ela começou a sua explanação que daria uma capa de IstoÉ – ‘Erro ou crime na morte de Tancredo’ – justamente por este ponto. Por que o Hospital de Base? Ela, enfermeira experiente, anotou todos os erros médicos. Do tumulto na sala de cirurgia a uma briga de cirurgiões para ter o privilégio de operar o presidente. Condenou a vaidade de médicos brasilienses e paulistas; a disputa de egos que inviabilizou o melhor entendimento do que fazer, com as condições técnicas oferecidas.
Sete agulhas
A vaidade dos médicos foi bem-vinda para nós, repórteres, que pudemos colher neste campo de cizânia informações de ambos os lados. Sabíamos ser um método que não nos levaria à precisão, mas não tínhamos muitas alternativas.
Erro por erro, havíamos sido induzidos a ele pelo primeiro diagnóstico: diverticulite. Os médicos hoje alegam que o deram com a melhor das intenções: não espalhar o pânico, que poderia ser causado pela divulgação de que o presidente tinha um tumor benigno. A emenda, porém, saiu pior do que o soneto. Com o diagnóstico desmascarado por informações dadas por médicos a políticos a quem nada poderiam negar, os boletins oficiais tiveram sua credibilidade irremediavelmente comprometida. Mal que padecem ainda hoje, 20 anos depois.
Mas a freira não se impressionara apenas com a conduta médica. Contou-me, em segredo, ter recebido a visita de um monge vidente, que dizia saber de três ‘trabalhos’ feitos contra o presidente e que precisariam ser desmontados. O encontro teria acontecido dois dias depois da internação do presidente, no apartamento particular que este mantinha em Brasília.
Incrédula, ela ainda teria ralhado com o religioso, por acreditar em magias. O homem porém insistiu. Encontrava-se no apartamento um sobrinho da freira, adepto do espiritismo, que a estimulou a deixar o visitante provar o que dizia.
Ele pedira o travesseiro do presidente. Trouxeram-lhe a peça. O homem rasgou o pano e junto com o enchimento despencaram no chão uma cabeça de cobra, seca; um boneco de contas de terço e uma pequeno busto em madeira do presidente, riscado ao meio. Ele recolheu os achados, e disse que os atiraria em um rio.
A freira contava-me a passagem ruborescida. Disse ter ele voltado dois dias depois e pedido para ver a caixa onde se guardava o chapéu do presidente. Mas Tancredo não usava chapéu, disseram-lhe. E ele, inabalável: ‘Procurem!’
A história correu pela família e alguém lembrou que na viagem que fez como presidente eleito à Itália, Tancredo teria usado um chapéu para proteger-se da neve. A peça foi encontrada numa caixa, dentro de um armário na Fundação Getúlio Vargas, onde reunira-se o gabinete de transição. Aberta a caixa, havia lá um boneco, com sete agulhas fincadas. ‘O número de operações que ele sofreu’, lembrou a freira.
Primeira entrevista
O monge voltaria a aparecer. Visitou a freira no Incor e pediu que localizassem um berimbau. Mais uma vez alguém lembrou haver um entre os pertences do presidente recolhidos à granja do Riacho Fundo, em Brasília. O problema é que a chave da casa da granja estava com Dona Risoleta Neves. A mulher de Tancredo, muito católica, já havia ralhado com os parentes que davam vazão às histórias do monge. Ninguém teve coragem de procurá-la.
Dias depois, apurando as histórias médicas em Brasília, para a capa de IstoÉ, contei para a secretária de Tancredo, Antônia Gonçalves de Araújo, o segredo da freira. Ela não somente me confirmou ter sabido da história, como disse que, ao supervisionar a retirada dos pertences do presidente, já falecido, da granja do Riacho Fundo, havia se deparado com o berimbau. Examinando a peça, encontrou, sob a cuia, uma foto do presidente com os dois olhos furados.
Liguei para a freira para contar-lhe o desfecho e pedir autorização para publicar a história. Ela desautorizou terminantemente, dizendo ser inadmissível para uma religiosa referendar magias. Eu prometi registrar o seu descrédito. Mas ela não cedeu.
O último dos episódios sobre os quais não escrevi, aconteceu alguns meses após a morte de Tancredo Neves. Eu acompanhara o governador do Distrito Federal, José Aparecido de Oliveira, a uma festa em uma casa no Lago Sul. Ficamos numa mesa onde encontravam-se também Carlos Castello Branco, Thales Ramalho e um oficial da revolução de 1932. Todos bebemos muito e a um determinado momento o José Aparecido bateu nas minhas costas e disse:
– Castelo e Thales, eu vou fazer uma promessa e quero vocês como testemunhas. O nosso Muzzi aqui, como todos nós, está muito triste pela perda do Tancredo. Se existisse um governo mineiro, ele teria muitas fontes para buscar notícias. Pois eu já arquitetei um modo de reparar isto tudo. Uma bruxa muito poderosa confidenciou-me que o sucessor do Sarney não vai terminar o mandato e que o vice dele será um mineiro. Pois eu vou convencer o Jânio [Quadros] a sair candidato e me ter como vice. A saúde dele não anda lá essas coisas. E quando houver o desfecho e eu assumir, quero prometer que minha primeira entrevista será para o Inácio Muzzi.
Em 1992, o sucessor de Sarney, Fernando Collor, sofreu impeachment, e o sucessor dele era um mineiro: Itamar Franco.
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Jornalista, vice-presidente da Companhia de Notícias, em Brasília