Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Memórias de um repórter em Portugal

O jornalista Ewaldo Dantas Ferreira é dono de uma longa carreira exercida nos mais importantes veículos de comunicação do Brasil. Durante essa trajetória, esteve presente em acontecimentos decisivos da história mundial. Quando eclodiu a Revolução dos Cravos, Ewaldo trabalhava no Jornal da Tarde, em São Paulo, e foi escalado para cobrir o movimento. Nesta entrevista ao Observatório da Imprensa, ele lembra do tempo que passou em Portugal e conta como foi o trabalho de reportar a queda de uma ditadura para um país que vivia sua própria ditadura.

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Quais são suas lembranças da Revolução dos Cravos?

Ewaldo Dantas Ferreira – A primeira lembrança é do primeiro sinal recebido ao amanhecer, na redação do Jornal da Tarde. Durante a madrugada, em Portugal inteiro as rádios bloqueadas pela insurreição passaram a tocar aquela música popular Grândola Vila Morena. Era a senha da derrubada da ditadura. O primeiro avião era para Paris; no aeroporto trocamos por outro que saía um pouco antes para Madri. Parti com o colega Clovis Rossi, do Estadão. Portugal de fronteira fechada para sobrevôos, chegamos quando estava amanhecendo em Lisboa, por via férrea.

Minhas primeiras matérias foram feitas nas portas das cadeias durante a liberação dos presos da ditadura e no movimento frenético das multidões, do povão mesmo, invadindo os palácios e os principais centros do poder e repartições públicas. Nas ruas, a multidão misturava a explosão de alegria e as correrias em perseguição dos agentes da PIDE, que era a polícia política do regime derrubado. A imprensa portuguesa também estava envolvida na explosão da alegria revolucionária.

Em 1974, o Brasil vivia sob ditadura e num período de censura nas redações. Como foi a repercussão da Revolução dos Cravos na imprensa brasileira?

E.D.F. – Provavelmente, em matéria de volume nós publicamos muito mais. Na cobertura fotográfica enchemos páginas e páginas de edições seguidas. Na madrugada do terceiro dia entramos no hotel para sentar e comer nosso primeiro sanduíche. O bar estava repleto de jornalistas do mundo inteiro, cheio de uísque e barulho. No dia seguinte ouvi de Manoel de Mello uma informação que para mim enriqueceu a beleza da Revolução dos Cravos. Ele era um dos cinco maiores empresários de Portugal e Colônias e acabara de perder tudo. Contou que amanheceu na guarita de entrada do palácio onde estava reunido o Estado Maior Revolucionário no seu primeiro esforço de organização das coisas. Manoel de Mello disse que anunciou seu nome ao oficial do dia e foi imediatamente introduzido na sala onde estava fechado o Estado Maior. Convidado a sentar-se, passou a ler uma lista de sugestões de procedimentos a serem tomados imediatamente na área financeira interna e externa do Estado que estava se instaurando. Entregou a lista e prestou esclarecimentos solicitados. Disse que recebeu os agradecimentos de todos que, à sua saída, foram acompanhá-lo até a porta.

Pois foi no meio dessas emoções que Portugal recebeu a notícia da chegada do novo embaixador brasileiro, o general Carlos Alberto Fontoura, que, para ocupar a nova função, deixara no Brasil a função de responsável pelo Serviço Nacional de Informações (SNI). O povo português não sabia o que era o SNI e foi informado que era a PIDE do Brasil. O povo ainda estava sem fôlego de perseguir pelas ruas os agentes da PIDE.

O primeiro despacho que mandei, registrando o movimento de indignação provocado até nas ruas de Lisboa e outras cidades, foi recolhido pessoalmente pelo censor de plantão no Jornal da Tarde. Todos sabem que, naquele tempo dos Cravos, o Estadão e o Jornal da Tarde eram os dois jornais brasileiros que tinham censores dentro da redação. Mas ao receber a minha nota sobre a reação à chegada do novo embaixador brasileiro, o censor pegou o despacho e foi embora com ele no bolso. Ruy Mesquita notou, telefonou para Lisboa contando o fato e me instruiu: ‘O jornal não vai publicar nada mas você continue cobrindo tudo sobre o assunto. O governo precisa saber’.

A coisa continuou assim. A informação essencial ao interesse da sociedade civil deste país que chegava à redação era censurada. O censor a seqüestrava e a levava ao conhecimento do poder censor, que precisava dela. Um raro flagrante da irracionalidade e da ignomínia que a censura é.

Trinta anos após a Revolução do Cravos, como você a avalia?

E.D.F. – A Revolução dos Cravos foi um marco na História. Marco da incorporação da Península Ibérica num processo novo. Foi a hora em que Portugal começou a assumir o papel indefectível que agora lhe cabe numa Europa empenhada na reformulação do equilíbrio de forças do nosso tempo.

Como foi possível acontecer tudo isso naquele Portugal que emerge da liderança dos descobrimentos do mundo? Pensei nisso no estádio de Lisboa, no dia 1º de Maio da Revolução dos Cravos. Foi um fenômeno social de exuberante beleza e fecundidade. A festa de um povo numa rara reunião de todos os partidos políticos, de todas as ideologias, amigos, inimigos, cantando todos abraçados, falando cada qual o que queria. Parecia um povo novo com um projeto novo.

Lembro com gosto de um telegrama que recebi em Lisboa de alguém contente com a minha cobertura da festa do 1º de Maio e me pedindo para escrever um livro. Assinado por Alberto Dines.