Ensina o dito popular que ‘agosto é mês de desgosto’. Para os políticos é mês de astral ruim, especialmente para os presidentes da República, e o pior agosto para um presidente foi, sem dúvida, o de 1954, quando no dia 24 Getúlio Dornelles Vargas se suicidou. O suicídio foi conseqüência do que acontecera dias antes (5/8) que ficou conhecido como o ‘Atentado da Rua Tonelero’.
O atentado foi contra o jornalista e político Carlos Lacerda, que ficou ferido no pé. Foram ainda vítimas o major-aviador Rubem Florentino Vaz, que morreu, e o guarda municipal Sávio Romero, também atingido por um tiro.
Lacerda, além de candidato a deputado federal, era diretor-proprietário do jornal Tribuna da Imprensa. Seja como jornalista, seja como político, era um opositor sistemático e virulento do governo Vargas, o que o levava muitas vezes a distorcer a verdade dos fatos e a pregar a subversão da ordem. Mas isso não justificava a tentativa de sua eliminação física – na época vivia-se a democracia e para os caluniadores existia a Justiça.
A mecânica do atentado
Fato é que Lacerda fora ameaçado algumas vezes; portanto, um grupo de oficiais da Aeronáutica servia-lhe de segurança durante seus comícios noturnos. Naquele início de madrugada do dia 5, ele voltava de um deles, no pátio do Colégio São José. Chegara à Rua Tonelero, onde morava, no carro de seu ‘segurança do dia’, o major Rubem Vaz. Estava também acompanhado por seu filho Sérgio. Os três desceram do carro, conversaram um pouco e já se tinham despedido quando surgiu da escuridão uma pessoa, que atirou contra Lacerda. O major atracou-se com este e levou um tiro mortal no peito. Depois de colocar seu filho a salvo na garagem do prédio, Lacerda revidou, atirando contra seu agressor, que fugiu. O guarda municipal Sávio Romero, que ouvira os disparos e fora verificar o que estava acontecendo, também foi atingido pelo fugitivo, que entrou num táxi. Mesmo caído, Romero conseguiu atirar contra o carro e anotar sua placa.
Por um desses acasos da vida, poucos metros à frente do carro do major estava estacionado um velho Packard, e três jornalistas do Diário Carioca conversavam: do lado de fora, Armando Nogueira e Deodato Maia, repórter esportivo, e, no banco de trás do carro, Otávio Bonfim – o que transformou o atentado da Rua Tonelero em furo de reportagem histórico e o real ponto de partida para a magnífica carreira de Armando Nogueira. Otávio Bonfim, em declarações dadas em 16/5/1992, disse que do pequeno vidro traseiro do carro ‘viu tudo’; todavia, adiante disse que a iluminação da rua só era boa na parte central. Como o carro estava estacionado no meio-fio esquerdo, a visão não podia ser boa. De mais a mais, eles devem ter tomado ciência depois do fato acontecido, o que não desmerece o furo.
Nos 50 anos do atentado, o Jornal do Brasil saiu na frente na edição de domingo (1/8) com ‘Rumos da história – Repercussão dos tiros disparados contra o jornalista levou Getúlio Vargas ao suicídio’, introdução para o artigo ‘Rua Toneleiros (sic), o abismo de Getúlio Vargas’, do jornalista Pedro do Couto. A introdução logo no início comete um equívoco histórico comprometedor:
‘O atentado da Rua Toneleros (na verdade, Tonelero, nome de uma passagem das esquadras brasileiras na Guerra do Paraguai)’.
A passagem de Tonelero aconteceu durante a guerra contra o ditador argentino Juan Manoel Rosas, a 17 de dezembro de 1851, e a Guerra do Paraguai teve início somente em 1865. Mas tudo bem, o artigo de Pedro do Couto é muito bom, conta suas recordações dos fatos, por isso mesmo nos explica a mecânica do atentado.
O preço do crime
O único que sabe exatamente como e o que aconteceu naquela madrugada é o autor do atentado, mais que as vítimas sobreviventes e mais ainda do que os três jornalistas testemunhas, pois era o único a não sofrer o fator surpresa. Portanto, o documento mais importante para contar a história desde o início é o depoimento-confissão do autor dos disparos, Alcino João do Nascimento.
Inicialmente vale saber como as autoridades chegaram a Alcino. Foi pela forma mais fácil, o motorista do táxi que o conduziu e lhe deu fuga, Nelson Raimundo de Souza, sabendo que seu carro fora reconhecido, pois antes mesmo do raiar do dia a imprensa já começara a funcionar, noticiando pelo rádio o atentado e seus detalhes, resolveu no mesmo dia 5 apresentar-se ao distrito policial e contar tudo. Seu ponto de táxi era na Rua Silveira Martins, esquina da Rua do Catete – isto é, junto ao então palácio presidencial – e servia habitualmente a componentes da guarda pessoal de Getúlio. No dia do atentado havia ficado à disposição de Climério Euribes de Almeida, integrante desta guarda pessoal. Para chegar a Alcino foi fácil. Ele foi preso e seu depoimento, dado em 13 de agosto. O que chama a atenção em suas declarações é o amadorismo e a ingenuidade, resultando num monte de atrapalhadas que marcaram o atentado.
A primeira atrapalhada foi a escolha do pistoleiro. Alcino era marceneiro e fazia biscates esporádicos. Uns sete meses antes conhecera José Antônio Soares, que passou a ajudá-lo financeiramente, pois estava em dificuldades. Até que Soares um dia lhe disse que precisava matar um desafeto que tentava seduzir sua mulher. Alcino aceitou imediatamente a empreitada por um pagamento de cinco mil cruzeiros. No carnaval cumpriu seu trabalho, mas depois o pagante descobriu que o sicário havia matado a pessoa errada.
O fato não impediu que Soares o apresentasse a Climério, pois este precisava eliminar alguém. O pagamento era alto, 500 mil cruzeiros (para se ter uma idéia, Alcino pagava 550 cruzeiros mensais de aluguel) e, mais que isso, uma nomeação como investigador da polícia..
Gregório Fortunato
Inicialmente Alcino foi levado pelos dois a um comício em Nova Iguaçu para tomar conhecimento de quem deveria matar: era Carlos Lacerda. O segundo passo era marcar o atentado. Ficou estabelecido que seria em Barra Mansa, quando ele faria mais um comício. Tudo certo, partiram os três no carro de Soares para esta cidade, só que a 5 quilômetros da chegada o automóvel enguiçou. Tiveram que adiar tudo, pois sem o veículo a fuga seria impossível. Tornaram marcar o assassinato para o dia 4 de agosto, quando o jornalista faria comício no Colégio São José, na Tijuca. Encontraram-se Climério e Alcino no Jardim do Méier às 17h, tomaram um táxi até o tal colégio. Chegando, Climério foi telefonar a Nelson Raimundo de Souza para que viesse até lá e assim os servisse para a fuga, mas não o achou no ponto. Deixou recado sobre o local em que o estava esperando. De fato, Nelson chegou, mas a essa altura já eram 11 da noite, todo mundo tinha saído do colégio, e Alcino não vira Lacerda.
Voltou ao táxi e Climério mandou que fossem para Copacabana, estacionaram o carro numa transversal à Tonelero. Pouco depois chegou Lacerda com o filho e Rubem Vaz, acontecendo exatamente o já contado acima. Quando Alcino, em fuga, entrou no táxi, notou que Climério havia desaparecido. Nelson o estava levando para o centro da cidade; ao passar pela Avenida Beira-Mar, pediu para dar uma parada e jogou o revólver calibre 45 (arma então privativa das Forças Armadas, e que lhe fora dado por Climério) no mar. Foi deixado na esquina das ruas México e Santa Luzia. No Palácio Monroe (antiga sede do Senado Federal, hoje demolida) pegou um lotação (microônibus com 20 lugares sentados), foi até a Praça da Bandeira e tomou um táxi até a casa de Climério, que ficava no Cachambi. Quando chegou, ele não estava e sua mulher ouvia no rádio as notícias do atentado. Climério chegou com Nelson, deu-lhe 10 mil cruzeiros e, a partir daí, foi somente um fugir e esconder-se até que foram presos.
Chegou-se também facilmente a Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal de Getúlio, que inicialmente negou qualquer conhecimento no atentado. Mas aí vai outra atrapalhada das grandes. Gregório mandara 50 mil cruzeiros para a fuga de Climério, Alcino e Soares, e parte desse dinheiro foi encontrado em poder deles: o número de série das notas novas de 500 cruzeiros era igual ao de uma quantidade de dinheiro encontrada na casa de Gregório.
Perguntas que faltaram
Sem saída, confessou-se mandante do atentado, instigado pelos deputados Euvaldo Lodi e Danton Coelho – estes, obviamente, negaram tudo até na acareação. Ficou claro que Benjamin Dornelles Vargas, irmão de Getúlio, sabia de tudo o que estava para acontecer. O deputado Luthero Vargas, filho de Getúlio, nada teve com o atentado. O próprio presidente da República também era desconhecedor da conspiração, chegando a dizer, num desabafo: ‘Os tiros da Rua Tonelero me acertaram pelas costas’.
Finalmente, foram condenados Gregório Fortunato, Climério Euríbes de Almeida e Alcino João do Nascimento.
Neste 5 de agosto, 50 anos depois do atentado, Alcino João do Nascimento, com 82 anos, o único sobrevivente, deu entrevista à jornalista Daniela Dariano, do Jornal do Brasil. Sua versão é um pouco complicada. Estando armado, atravessou a rua, na direção de Lacerda, quando o major Rubem Vaz atracou-se com ele. Lacerda atirou, atingindo Vaz nas costas, e Alcino, assustado, deu-lhe um tiro no peito, mas não teria sido esse disparo que causou a morte, e sim o de Lacerda. Ficou faltando ele contar por que atravessou a rua em direção ao grupo de Lacerda, quem atirou em Lacerda e no guarda municipal Sávio Romero e por que fugiu, se era, como disse, um detetive trabalhando há dez anos com Getúlio…
Se estas perguntas lhe tivessem sido feitas durante a entrevista esclareceriam muitas coisas. Cada um tem o direito de contar o que quiser, mas para ser acreditado deve ser pelo menos coerente.
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Jornalista