Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O ‘inventor’ do rádio no Brasil

Decidi que 2007 será meu ‘Ano Roquette-Pinto da Comunicação Social’. Gesto isolado, individual, meio pretensioso, mas que talvez me sirva de alento diante de um novo começo político-administrativo para o Brasil, que, espero, contemplará novas e diferentes políticas para a comunicação social na pauta desenvolvimentista do governo – de aceleração, crescimento e inclusão –, como a quer o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Mas, por que Roquette-Pinto?

Esta é fácil, responderá o graduando em Comunicação, atento ao que lhe ensinamos em nossas faculdades: foi Roquette-Pinto quem inventou o rádio no Brasil.

Errado, responderá o professor mais atento, ainda que sejam poucos os realmente atentos aos detalhes biográficos de Edgard Roquette-Pinto, até porque esse extraordinário brasileiro está entre aquelas grandes expressões da vida nacional que até agora não receberam a atenção de uma biografia.

Errado não apenas porque, no arroubo retórico, o graduando, ou graduanda, atribuiu a Roquette-Pinto a façanha de inventar o rádio brasileiro. Talvez porque em uma aula de história da Comunicação, ele ou ela tenha ouvido alguma coisa que ligava aqui o início das transmissões radiofônicas com a Academia Brasileira de Ciências.

Errado, acima de tudo, porque Edgard Roquette-Pinto (1884-1954) foi muito, muito mais do que o fundador, em abril de 1923 da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, hoje Rádio MEC AM. Edgard Roquette-Pinto, nas duas décadas anteriores à criação da Rádio Sociedade protagonizou uma das mais brilhantes carreiras de cientista e educador que este país já conheceu.

Daí sua ligação com a Academia Brasileira de Ciências; daí ele ter convencido Henrique Morize, então presidente da Academia, a acompanhá-lo no desafio de iniciar o rádio no Brasil; daí a sua férrea convicção de que aquela nova tecnologia tinha que ser um instrumento de promoção, mais do que tudo, da educação, da ciência e da cultura.

Memória histórica

Roquette-Pinto formou-se médico em 1905, mas trocou logo a prática médica por um interesse científico abrangente. Já na formatura, o trabalho final, intitulado ‘O exercício da medicina entre os indígenas da América’, indicava suas amplas ambições intelectuais; no caso, a Antropologia. Um ano depois, já estava no Rio Grande do Sul, estudando sítios de sambaquis, as jazidas de ossos e outros remanescentes dos primitivos habitantes do nosso litoral. Pouco tempo depois, assumia por concurso a cátedra de etnografia e antropologia do Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro.

No Museu Nacional, conheceu, em 1911, o então tenente-coronel Cândido Rondon, a quem acompanhou, um ano depois, na expedição ao Mato Grosso, da qual resultou um clássico da literatura científica brasileira: Edgard Roquette-Pinto. Rondônia. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1975, 6ª edição, originalmente publicado em 1916: um minucioso tratado geográfico, etnográfico, antropológico, biológico e cultural que, para Gilberto Freyre, ombreava-se com Os Sertões, de Euclides da Cunha, no desvendamento de aspectos cruciais da cultura, nacionalidade e geografia nacionais.

Mas, insolitamente, como observei acima, esse extraordinário brasileiro permanece até hoje sem uma biografia. Talvez porque, como escreveu Ruy Castro no breve, mas agudo perfil biográfico que fez de Roquette-Pinto, um só volume não seria capaz de apreender toda a complexidade e multiplicidade de tão desafiador personagem. Daí ter intitulado seu ensaio Roquette-Pinto: O Homem Multidão; no subtítulo, a metáfora que julgou apropriada para descrever o personagem.

Foi durante a expedição com Rondon que Roquette-Pinto manifestou pela primeira vez seu fascínio com as coisas da comunicação. Em película, ele registrou as primeiras imagens dos Nhambiquaras, documentário pioneiro que doou, em 1912, à recém-inaugurada cinemateca do Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Roquette-Pinto foi sempre um brasileiro comprometido com a educação, e ele vira naquela nova tecnologia de comunicação, o cinema, um instrumento decisivo para levar informação e conhecimento às crianças e jovens de todo o país.

Por isso, em uma outra importante etapa de sua vida cívica e profissional, participou, ao lado de brasileiros igualmente extraordinários, como Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira, das primeiras tentativas de reformas estruturais da educação brasileira, processo durante o qual Roquette criou, em 1936, o INCE (Instituto Nacional do Cinema Educativo), instituição por meio da qual disseminou projetores e fitas educativas por dezenas de escolas públicas do então Distrito Federal, no que pretendia fosse uma campanha nacional.

Em outras palavras, ninguém mais do que Edgard Roquette-Pinto pensou, nos primórdios do século 20, como fazer convergir educação e as novas tecnologias da comunicação e da informação. Por isso, na década de 20, foi capaz de abandonar quase todo seu múltiplo e extraordinário passado de etnógrafo, antropólogo, geógrafo, pela tecnologia do rádio, dado o impacto que, muito mais do que o cinema, ela poderia ter sobre a educação.

Abandonou-o a tal ponto de hoje ter se tornado quase apenas uma curiosidade histórica: ele teria sido o ‘inventor’ do rádio no Brasil. O que é muito pouco reconhecimento para o brasileiro que ele foi, embora o suficiente para nos ensinar a lição preciosa: toda transição tecnológica na comunicação traz com ela a esperança de uma revolução civilizatória; na educação, na informação, na cultura.

Mas toda ela, até hoje, resultou no infortúnio da comunicação largamente mercantilizada, alienadora, ainda que aqui e acolá lampejos de suas potencialidades emancipatórias não nos deixem esquecer que outros caminhos, funções e usos seriam possíveis para ela.

Por isso, Edgard Roquette-Pinto, morto há mais de cinqüenta anos, tem tudo a ver com a idéia de democratização da comunicação social; ele é um importante recorte de nossa memória histórica que pode não nos deixar esquecer que as tecnologias da informação e comunicação, cada vez mais sofisticadas e poderosas, são apenas meios, embora tendam, pela força de seu poder técnico e apropriação pelo mercado, e pelo fascínio das suas abundantes possibilidades, a se tornarem fins em si mesmas.

História exemplar

Ontem o cinema e o rádio. E, depois, a televisão. E mais adiante, o computador. E, mais adiante do computador, a internet. Antes de ontem, o telefone. Hoje a convergência do telefone com o cinema, o rádio e a televisão, tendo como vetor a tecnologia digital originária do computador, agregada na internet.

O que não faria Edgard Roquette-Pinto diante das potencialidades civilizatórias da convergência? O que não diria Roquette-Pinto diante dos quase R$ 5 bilhões de reais que o governo entesoura hoje, oriundos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações?

Que novidade seria para ele a idéia aparentemente tão ousada de levar computadores e acesso à internet para todas as escolas públicas, se ele viu fracassar tão rotundamente seus generosos planos de um projetor de cinema em cada escola, para a projeção de filmes educativos e culturais, como viu fracassar seu generoso plano de um rádio não comercial, de serviço público, voltado para a educação e a cultura?

Quantos sabemos que o prefixo da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, PRA-2, era disputado por muito dinheiro nos anos 1930, e que Roquette recusou-se a vendê-lo, preferindo doar sua ‘invenção’, a preciosa Rádio Sociedade, ao Ministério da Educação?

Lembremos o que sobre isto escreveu Ruy Castro, e que me seja perdoada a longa transcrição:

‘Nadando contra a corrente, Roquette continuava a não admitir propaganda comercial ou política em sua emissora – o que a condenava a um gueto no dial. Mantida, como sempre, apenas pelos `sócios´, a Rádio Sociedade não tinha dinheiro para modernizar o equipamento e ampliar a potência a fim de enfrentar a concorrência. As óperas completas que transmitia (e que atraíram milhares de jovens brasileiros para o canto lírico) estavam sendo sufocadas em volume por O Teu Cabelo Não Nega. Roquette desejava apenas que houvesse espaço para todo mundo. Mas, agora, o ideal do rádio educativo no Brasil estava em perigo. Em 1933, convenceu seu amigo, o educador Anísio Teixeira, secretário da Educação, a fundar uma rádio-escola a ser mantida pela prefeitura do Rio, para servir de exemplo a outras no futuro.

Anísio topou, Roquette emprestou-lhe equipamento e funcionários da Rádio Sociedade e, com isso, a Rádio Escola Municipal, PRD-5, foi para o ar no ano seguinte. Em troca, Anísio pediu que ele fosse o seu primeiro diretor. Roquette aceitou. Talvez a nova estação do Largo da Carioca (rebatizada em 1945 como Rádio Roquette-Pinto) pudesse escapar ao comercialismo que parecia engolir todas as outras, inclusive a sua.

Para evitar a morte ou a desfiguração da Rádio Sociedade, Roquette só enxergava uma solução: reverter seus canais a um órgão oficial – o Ministério da Educação e Saúde. Em julho de 1936, quando resolveu se desfazer de sua rádio, Roquette-Pinto chamou seus filhos Paulo, de 27 anos, e Beatriz, de 25, à Rua da Carioca. Informou-lhes que, aos 52 anos, era um homem pobre e que a única herança que poderia deixar-lhes era a rádio, para que a dirigissem como uma rádio comercial. Só o prefixo, já então PRA-2, valia uma fortuna. `Mas não quero que ela se transforme numa rádio comercial´, acrescentou. A seu ver, ninguém – nem ele, nem seus filhos – poderia salvá-la desse destino. Somente um órgão oficial teria meios para isso.

Beatriz entendeu o que seu pai queria dizer. E nem esperou pela opinião do irmão. Antecipou-se e perguntou: `É esse o seu ideal, papai?´ `É´, respondeu Roquette. `É tão raro um homem realizar seu ideal, meu Deus. Dá a rádio, papai. Nem se discute.´

Roquette então perguntou por carta a Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde, se o ministério se interessaria pela rádio com tudo o que havia dentro: instalações, equipamento, biblioteca, laboratório de ensaios científicos, discoteca, instrumentos musicais, partituras, arquivo, móveis e utensílios, além, é óbvio, da estação transmissora em perfeito estado de funcionamento, com seus canais de ondas médias e curtas, e um quadro completo de locutores e técnicos com 13 anos de experiência. Tudo isto sem dívidas ou ônus de espécie alguma para a União e até com dinheiro em caixa. Única e irrevogável condição: a de que a rádio permanecesse fiel ao seu lema cultural e educativo, sem qualquer vinculação comercial, política ou religiosa.

Capanema respondeu que o presidente Getúlio Vargas aceitava e agradecia, mas sugeria que a reversão fosse feita através do Departamento de Propaganda e Difusão Cultural. Ao ler isso, um alarme tocou na cabeça de Roquette. Ele pareceu adivinhar que, em menos de um ano, o tal departamento se tornaria o infame Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do Estado Novo. Ora, ninguém o estava obrigando a desfazer-se de sua rádio. Sem hesitar, mandou outra carta a Capanema enfatizando que a reversão seria feita `ao Ministério de Educação do povo, não ao governo´. E só então Capanema entendeu e encerrou a correspondência, garantindo que o ministério a aceitava sem discussões, nos termos em que fora proposta.

Essas cartas foram os anticorpos que, no futuro, garantiriam a integridade da rádio contra os vários órgãos que tentariam apossar-se dela. A reversão foi sacramentada no dia 7 de setembro de 1936. Na cerimônia oficial, realizada no terceiro andar do prédio da Rua da Carioca, Capanema fez-se acompanhar por seu chefe de gabinete, Carlos Drummond de Andrade. Vinte e cinco anos depois, Drummond recordaria numa crônica que a cerimônia `tinha qualquer coisa de casamento no seio de uma família muita unida, que via a filha sair nos braços do rapaz escolhido livremente; sim, um excelente rapaz, tudo estava ótimo, os dois seriam muito felizes – mas… quem sabe?´ A imagem lhe ocorrera porque Roquette passara os canais a Capanema com a frase: `Entrego esta rádio com a mesma emoção com que se casa uma filha´.

Roquette saiu dali com Beatriz para um pequeno corredor nos fundos do andar e chorou de antecipada saudade. Com os olhos também molhados, Beatriz voltou para ajudar Drummond a colar os selos do ministério nos móveis e objetos da rádio. Naquele dia, (…), a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro deixava de existir, para que nascesse a Rádio Ministério da Educação.’

Eis aí porque, inspirado por essa maravilhosa história brasileira, justifico 2007 como o meu ‘Ano Roquette-Pinto da Comunicação Social’.

Afinal, lágrima de herói nunca é derramada em vão. Heróis dão exemplos; heróis abrem caminhos.

Heróis são alicerces do futuro; suas histórias de vida são construções de esperanças.

Edgard Roquette-Pinto é o maior, ainda que talvez o mais desconhecido, herói da comunicação brasileira.

Que a sua exemplar história de vida ilumine aqueles que, neste ano, assumirão a responsabilidade pela formulação e debate das políticas de comunicação no Brasil.

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Jornalista e professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, onde coordena o Laboratório de Políticas de Comunicação e o Grupo Interdisciplinar de Políticas, Direito, Economia e Tecnologias das Comunicações