Aos 82 anos de idade, 62 no jornalismo em tempo integral, 45 no Jornal do Brasil, Wilson Figueiredo é um dos mais experientes profissionais em atividade no País. Ficou praticamente impossível contar a história do JB e omitir o nome desse capixaba, nascido em Castelo, batizado na igreja de São José em Belo Horizonte e criado em Minas desde os 8 meses de idade. Da mesma forma, é impossível dissociá-lo do longo período transcorrido dentro da Redação do jornal em cuja reforma foi ator e testemunha desde os primeiros dias.Tem na ponta da língua a crônica do JB, os antecedentes e acidentes históricos transcorridos sob a orientação da Condessa Pereira Carneiro e de M.F. do Nascimento Brito, transformações, sucessos e insucessos que marcam a história do diário que estampa o nome do país no seu cabeçalho.
Wilson Figueiredo fala, com prazer e certa nostalgia, dos nomes ilustres que dirigiram o JB e nele colaboraram, dos repórteres que se identificaram com o espírito do JB, dos colunistas, dos que tiveram seu batismo profissional na Redação onde o sol não se punha. Tem a memória das duas sedes – a da Avenida Rio Branco e a da Avenida Brasil. Mas seu limite é o jornal. Abstém-se de emitir opinião sobre questões relativas à empresa e às decisões que não dizem respeito ao jornalismo dos seus anos de casa. Numa longa e descontraída conversa, recolhida com a cumplicidade de um gravador, ele surpreende pela memória precisa. Dá uma aula sobre o tempo que passou no JB e lembra com emoção os episódios que viveu e os amigos que fez na profissão.
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Como é o comecinho desta aventura?
Wilson Figueiredo – Meu primeiro emprego foi na Agência Meridional, dos Diários Assiociados, na Redação do Estado de Minas, em Belo Horizonte, no ano de 1944. Eu me preparava para o vestibular de Medicina por uma escolha tácita de família, desde que nenhum dos quatro filhos homens de meu pai quis seguir a profissão dele. Mas ao chegar à capital mineira, que ainda tinha em torno de 250 mil habitantes, fui morar em pensão de estudante, mudei da água para o vinho (ou do vinho para a água) e me enturmei com o pessoal da literatura. Já eram presenças nos suplementos literários o Hélio (Pellegrino), o Paulo (Mendes Campos), o Fernando Sabino, o Otto Lara Resende, além dos que já estavam federalizados, como Ciro dos Anjos, Emílio Moura, João Dornas, Guilhermino Cesar. Belô estava se civilizando, na administração JK, com o cassino da Pampulha e uma vontade enorme de ser grande cidade. E, para encurtar o caminho, fui para a Faculdade de Filosofia fazer o curso de Língua e Literatura Neo-Latina. Carlos Castelo Branco, estudante de Direito e secretário de Redação do Estado de Minas, e que também escrevia ‘continhos brasileiros’ e morava em pensão, apadrinhou meu deslumbramento literário de rapaz vindo do interior. Um dia me perguntou se eu era datilógrafo, respondia que não, mas, como usava dois dedos de cada mão na máquina de escrever, concluiu que não fazia diferença e me levou assim mesmo para uma experiência na Agência Meridional. Comecei no mesmo dia. Em tempo: no final do mês, o primeiro salário veio maior do que me foi anunciado, porque a carreira de jornalista fora contemplada com o salário profissional. Era uma vez a vocação para a medicina. Comecei como ‘tradutor de telegrama’, que era ordenar e reduzir às necessidades do jornal as informações das agências noticiosas internacionais. Chegavam pelo telégrafo quilômetros de telegramas. A Guerra Mundial estava entrando na última fase com o desembarque aliado na Normandia, em junho de 1944. As notícias da guerra tinham primazia no interesse dos leitores porque, sob o Estado Novo, a censura à imprensa reduzia ao mínimo o que pudesse merecer atenção como informação e opinião. O Congresso estava fechado desde 1937, não havia vida política, nem partidos políticos, nem eleição.Toda ditadura se nivela pela supressão da liberdade de imprensa. O Estado Novo caprichou. A censura era organizada, havia até carreira do censor no serviço público.
Eu fiquei amigo do Otto Lara Resende, que despontava como escritor e era repórter e redator do Diário (católico). Os jornais do Rio e de São Paulo eram comprados à noite, quando chegavam pelo trem da Central. Era uma janela aberta para o mundo lá fora. Mas, se não havia notícías políticas, não faltava informação política por via oral. Boatos em profusão, cautelosamente passados adiante. Sabia-se de tudo e até do que não ocorria. Discutiam-se idéias, comentavam-se os fatos públicos, freqüentavam-se conferências de visitantes ilustres. Os estudantes, como sempre, faziam política quando os adultos se omitiam. Principalmente distribuir panfletos contra a ditadura e o ditador Getúlio Vargas. Havia prisões quando apanhados de madrugada em panfletagem contra o Estado Novo. Mas o Brasil começava a se mover. O brasileiro pressentia – sem ter certeza – os últimos meses do Estado Novo. Era certo que o fim da segunda guerra liquidaria a ditadura. O mundo contava o tempo para a capitulação alemã. Depois de quatro anos, aceitei ser um dos secretários da Folha de Minas – fundada pelo Affonso Arinos para ser jornal da oposição e, por ironia, acabou nas mãos do governo estadual por tabela. Para evitar a falência fez uma operação financeira com sujeito oculto. A partir daí o jornalismo já era para mim mais que uma profissão para começar. Iria viver dele. Em 1946, no Rio, depois de encerrado o Congresso da UNE, trabalhei por seis meses no jornal Democracia, folha política dirigido por Francisco de Assis Barbosa. Mas, terminada a Constituinte, senti saudade e voltei para Belo Horizonte.
E quando veio em definitivo para o Rio?
W.F. – Em 1957. Troquei pernas por várias redações, emprego andava difícil. Passei alguns meses na Última Hora, que já não era a mesma, mas continuava a ser uma referência política. Passei pela Tribuna da Imprensa, que também vivia um tempo de adversidade. Aí, mais uma vez, o Castelinho me deu a mão e me levou ao Odylo Costa, filho, que estava arrebanhando repórteres e redatores para começar a reforma do JB. Vi o nascimento de um projeto de jornalismo ambicioso: o título tradicional, de Jornal do Brasil, marginalizado na competição desde a Primeira Guerra Mundial, queria se recuperar como ‘um jornal de importância nacional e referência internacional’. O Brasil também se dispunha a uma arrancada histórica. O salto industrial estava preparado. Havia dificuldades, inclusive políticas, mas o País seguia adiante. O último abalo tinha sido a morte de Getúlio Vargas, seguida da campanha sucessória no vácuo político (e da tentativa de evitar a posse do eleito). Mas estava na medida exata para JK, que fez um bem enorme, em primeiro lugar, aos brasileiros com um governo de resultados visíveis. Deu o toque industrial ao Brasil e acesso do brasileiro ao consumo de bens duráveis, como dizem os economistas. Sem querer, o JB e JK, embora se estranhando em diversos episódios, participaram do mesmo projeto. Cheguei a tempo no JB. Sai por dois anos e, quando voltei, foi para ficar até o fim daquela encarnação.
A reforma que mudou a cara do jornal…
W.F. – Não foi apenas uma operação gráfica, mas uma reforma profissional e empresarial. Precisou de tempo. O JB tinha um agente financeiro no andar térreo: o guichê dos anúncios classificados que o livrava de preocupações com a subsistência. Depois de muitos desencontros, o jornal se encontrou numa confiança indispensável entre empresa e jornalismo. Apenas um exemplo: não havia cartão de ponto na redação do Jornal do Brasil. As tentativas de manter o jornalista sob rédea curta, numa profissão com margem de erro para produzir e dissipar tempo, não pegaram. Pareciam, e eram, desconfiança. Controle de ponto é incompatível com a atividade que não tem horário para começar e acabar. O horário rígido desmobiliza o espírito do repórter e do redator porque se trata de atividade de tempo ilimitado. Fatos não têm hora marcada. Acidentes acontecem a qualquer momento. Eu atribuo a essa (digamos) liberalidade consentida pela direção um dos motivos do estado de espírito que identifica os que passaram pelo JB. Formam uma confraria ruidosa quando se encontram. Um caso bom para meditação: no esforço para impor o fechamento dos trabalhos da redação mais cedo, para o jornal chegar logo às bancas, o JB conseguiu um dia dar por encerrada a tarefa dentro da hora marcada. Pois não demorou e veio a notícia de um desastre ferroviário de proporções, com mortos e feridos em quantidade, na linha da Central. A apuração varou a madrugada e o jornal chegou tarde às bancas. Jornal é para chegar às bancas quando ficar pronto. O resto não é com a redação.
A reforma do JB era necessidade à espera de oportunidade. Mas também fatalidade. Com a morte do Conde Pereira Carneiro a Condessa abriu a questão com Annibal Freyre, ex-ministro do Supremo, que tivera a confiança do Conde e continuou a dirigir o jornal quando a Condessa o sucedeu à frente do JB. A iniciativa de fazer uma reforma para o JB se situar nos novos tempos foi da condessa. Ela começou as consultas e a pensar em nomes para a reforma do JB. Dona Maurina Dunshee de Abranches era maranhense, filha de jornalista que também dirigira o JB, e se lembrou do seu conterrâneo, Odylo Costa, filho, redator político do Diário de Notícias. E Odylo veio a ser – por dois anos – o executor de uma reforma que se sabia difícil de começar num jornal já sexagenário e com tiragem de sobrevivência. Era o jornal que vivia da receita dos anúncios classificados. Odylo cuidou da Redação, convidou um grupo de jornalistas que começavam a vida profissional, a maioria da Tribuna da Imprensa e do Diário Carioca. Eram jovens ainda sem maiores compromissos de vida e, em tese, sem necessidade de remuneração alta. Os salários haviam subido com o aparecimento de Última Hora, mas, com a crise política do governo Vargas, sofreram achatamento geral. O jornalismo não chegava a ser uma profissão da qual fosse possível viver fora dos cargos de confiança (e sem emprego público, que é outra história a ser levantada). Outro efeito da reforma do JB foi o reconhecimento da necessidade de remunerar melhor. Não foi reivindicação atendida num mês, nem num ano. A revisão salarial se viabilizou pela competição ativada. Um processo longo. Ainda está por ser estudado em profundidade o fechamento epidêmico de jornais de credibilidade no Rio, depois de perder o status de capital federal. Nem tudo foi falta de visão comercial, nem apenas conseqüência das posições políticas a partir de 1964.
Fui para o JB em abril de 57. Comecei junto com Hermano Alves, Luís Lobo, Carlos Lemos, Bandeira da Costa, Cesario Marques, Calazans Fernandes, Quintino de Carvalho, Mário Faustino, Joaquim Campelo, Luiz Gutemberg, Edilberto Coutinho, Ana Arruda em seu primeiro emprego. Uma galeria de vivos e mortos sempre lembrados. Não dá para citar todos. Em seguida vieram Ferreira Gullar, Jânio Freitas, José Ramos Tinhorão, Amílcar de Castro, não necessariamente nessa ordem, e mais tarde Fernando Gabeira, todos reunidos pelas circunstâncias de mercado e apostando na contribuição democrática da imprensa.
Mas o Odylo acabou caindo.
W.F. – Era inevitável. Reformas desgastam os dois lados. Odylo não era um temperamento afeito ao trabalho organizado, metódico. Além de escritor e jornalista, tinha relações políticas estreitas com a UDN. Faltava-lhe método e tinha o prazer de improvisar, mas o que o jornal precisava naquela altura era de mão firme para operar com a direção, sem injunções alheias ao trabalho profissional. A Redação nova se sentia preterida pela eterna redução de custos, e pressionada pela gerência comercial. Odylo teve o mérito de quebrar o tabu da primeira página exclusiva de anúncios classificados, com fotografias e títulos que chamavam para as páginas de dentro. Recrutou a rapaziada para animar um jornal vazio de criatividade, com uma aparência gráfica de afugentar leitor. Mas bateu de frente com a empresa, por motivos políticos e de custos. Não tinha cabeça de empresário. Desentendeu-se e saiu. Depois de um período de reavaliação do projeto, a diretoria entregou a Redação a Jânio de Freitas, que também não teve condições de promover mudanças coerentes sem a renovação de pessoal. O conflito de gerações, entre os profissionais antigos e a garotada que estava chegando, passava-se nos bastidores. Jânio saiu, mas deixou as bases da reforma cujo primeiro objetivo era exatamente estabelecer o padrão moderno de texto e o padrão gráfico que demandavam condições materiais com que não podia contar.
Aí veio o Alberto Dines?
W.F. – Em janeiro de 1962, foi a vez do Dines, que entrou ciente das dificuldades, mas com a disposição de equacioná-las e resolvê-las racionalmente com a empresa. Fez a ponte entre o jornalismo e a empresa, ainda não acostumada às mudanças e novidades que estavam em curso. Dines administrou as diferenças. Pouco antes, o JB já tinha ultrapassado a etapa preparatória, quando o presidente Jânio Quadros reabriu a crise com a renúncia. O choque cultural entre a antiga Redação, que operava na sombra, e a nova, modernizadora, estava esgotado. Dines ficou onze anos e, no edifício da Avenida Brasil, o JB chegou ao auge do projeto: atou as duas pontas da solução possível. O JB é considerado a exceção à regra segundo a qual nenhum jornal que entra em decadência nunca mais levanta a cabeça. O ‘Caderno B’ já estava criado (iniciativa de Reynaldo Jardim), foi prestigiado e se tornou um das marcas do jornal em matéria de cultura e espetáculos (que todos os jornais hoje têm).
O Jornal do Brasil mantinha posição meio petulante, meio desafiadora, mas que não ia para o confronto aberto com o governo, como o Correio da Manhã. Nunca fechava a porta. Liberal nas convicções, instigante e provocador, nas reportagens e nas manchetes e chamadas de primeira página. A opinião também se tornou um culto. Gosto pelo trabalho de equipe foi outra das características de Alberto Dines. Desde antes, entre 1965 e 68, o jornal se firmou pela informação política confiável e a opinião arejada, enquanto outros jornais, já em crise, apostaram apenas na resistência política cega à ditadura para o qual, por conta própria, se encaminhava o regime. Nessa altura JB foi perdendo (para O Globo) a receita dos classificados e consolidando prestígio juntos às agências de propaganda: o jornal se tornou veículo de prestígio. A sede da Avenida Brasil foi o sinal exterior da opulência.
O JB conquistou espaço?
W.F. – As mudanças no JB coincidiram com o salto de modernidade na economia e na indústria do País. A indústria e as agências de publicidade distinguiam o JB. Quando o mercado respondeu aos apelos dos produtos industriais – no rastro da euforia do governo Kubitschek – acelerou-se a seleção natural entre os jornais. O Correio da Manhã, por exemplo, sofreu as conseqüências da sua imprevidência e pagou preço elevado pelo seu posicionamento político. O Jornal do Commercio, até hoje identificado com o conceito de jornal de assuntos financeiros e econômicos, ficou restrito ao universo dos negócios. Se não me engano, é de Janio Freitas o mérito de ter acabado com o hábito de começar notícia na primeira página e continuar nas páginas de dentro. Fez da primeira página a vitrina do jornal.
Quando Assis Chateaubriand caiu doente, no início da década de 60, os Diários Associados ficaram com dirigentes aos quais faltava o sentido da modernização dos jornais e do jornalismo na economia de mercado e no relacionamento com o governo. A cadeia dos Diários Associados naufragou, com a sobrevivência de poucos títulos. O Correio da Manhã, com o ‘poder de derrubar ministros’, como se dizia, não tinha com o governo militar relacionamento normal, nem fazia questão de ter prestígio oficial. O desaparecimento do Correio não restringiu o impacto ao vazio deixado pelos seus editoriais. Foi o marco histórico. Outras publicações também desapareceram. Também contou o desaparecimento de outros jornais e revistas, como o Diário de Notícias, que sucumbiu ao desgaste do envolvimento político e da negligência empresarial.
O jornal e o país continuaram crescendo?
W.F. – A operação de transferência da Avenida Rio Branco para a Avenida Brasil foi planejada e executada ao longo de 16 anos. A reforma do jornal, iniciada em 1957 em suas páginas, foi concluída em 1973, com a mudança e a modernização do equipamento gráfico para atender às novas necessidades no novo prédio. No transcurso dos 16 anos, o JB comprou o terreno da Avenida Brasil 500, preparou e executou o projeto, e provou a embriaguez do sucesso. O Brasil já era outro país. A crise política – que batia à porta nos anos 50 – não deteve o crescimento, nem a expansão industrial e a criação do mercado interno. O Brasil deixou de abrir estradas com centenas de homens de enxada na mão: há no número da Manchete sobre a inauguração de Brasília uma foto que vale como documento de uma época que acabava para se iniciar outra. Critica-se ainda JK porque o seu governo criou as grandes empreiteiras. Como, porém, abrir estradas, tocar grandes obras sem grandes empresas?
E o senhor nunca deixou o JB?
W.F. – Em 1960, Assis Chateaubriand queria fazer uma reforma no O Jornal e me convidou. Eu caí no conto da reforma. Mas aprendi que, sem dispor dos meios, é um engano tentar mudança drástica com expectativa. É natural a resistência por parte de quem se sente ameaçado. No fim de um ano eu vi que os Associados não queriam gastar dinheiro, mas ter um milagre. Passei pelo Diário Carioca, do Arnon de Mello, mas já a caminho do JB. A|berto Dines, deixando o Diário da Noite, que fez sucesso como tablóide, me convidou para ir com ele para o JB.
Como foi o retorno?
W.F. – Ia começar a fase de estruturação paciente, sob novas injunções, mas com as dificuldades equacionadas. A crise política plantada por Jânio Quadros florescia. O País vivia uma expectativa de grande incerteza. João Goulart foi um problema político não resolvido quando vice de JK. A resistência militar continuava em carne viva. O pomo da discórdia era o parlamentarismo que Jango aceitou, mas não digeriu.
E como foi mesmo a história da renúncia de Jânio antecipada em sua coluna política na revista Mundo Ilustrado?
W.F. – Quando da minha passagem pelo Diário Carioca, o Joel Silveira nos convidou – a mim e ao Walter Fontoura – para mantermos duas páginas de assuntos políticos semanais no Mundo Ilustrado. Jânio Quadros, entre outros costumes, fazia uma reunião mensal, de três dias, com ministros e secretários de governos estaduais. Era uma iniciativa bem-sucedida com os governadores dos estados para tratar de problemas que dissessem respeito ao governo federal. A última foi no Maranhão. Castelinho e José Aparecido, aproveitando a oportunidade, vieram ao Rio e reuniram, num almoço em casa do primeiro, os jornalistas políticos para a costumeira troca de informações. Fui sem acreditar que sairia com algo de aproveitável na crônica do Mundo Ilustrado. Naquela conversa, Aparecido deu ciência de várias questões das quais pouco se sabia. Por exemplo, os bastidores do estremecimento entre Jango e Jânio, a propósito da derrubada do veto presidencial à admissão dos 10 mil empregados da Novacap como funcionários públicos. O Congresso aprovou a iniciativa de JK e derrubou o veto de Jânio, que estrilou. O pessoal do Rio quis saber como Jânio desfez o constrangimento em relação a Jango.Veio a explicação: o presidente chamou formalmente o vice e o convidou para chefiar a delegação do governo brasileiro à China. Era a paz. No curso da conversa, Jânio foi mais ele com a advertência: ‘Dr. João Goulart, não tem sentido a nossa divergência. O senhor é meu vice. Acha que a burguesia vai me depor para colocá-lo no meu lugar? Pode estar certo de que, se a minha cabeça for pendurada num poste, a sua vai balançar no poste ao lado’.
O papo ainda rolou. Alguém lembrou de que Jânio havia ameaçado renunciar quando seu veto caiu. Outro deu ciência de uma operação que envolveu figuras políticas nacionais para dissuadir o presidente da disposição. Um dos presentes deixou no ar a questão: já imaginaram o que ocasionaria a renúncia do presidente? A multidão na rua era uma incógnita. Mais tarde o Walter Fontoura, com as informações e opiniões que havia recolhido entre políticos, me cobrou o artigo de abertura da coluna. Não pestanejei. Contei a história que era inédita. Escrevi e o Mundo Ilustrado publicou, acho que dez dias antes da renúncia, com o título ‘Renúncia, a arma secreta de Jânio’. Contei que, sob pressão, Jânio apelaria para a renúncia. Era o sinal para mobilizar a opinião pública e confirmar seus poderes com respaldo do povão. A coluna foi publicada no dia 12 de agosto e ele renunciou no dia 25. Estremeci no pedestal. Um deputado da UDN – com a revista na mão – propunha uma CPI. Mas deu em nada. A crise tinha pressa contra Jânio, em razão da história pregressa de renúncias. Tentara mais de uma vez como candidato.
O senhor criou o ‘Informe JB’?
W.F. – Alberto Dines quis que eu assumisse uma coluna no primeiro caderno. Trataria também de política, com mais liberdade do que a reportagem especializada. Passaria a fazer parte também do grupo de editorialistas. O contato diário com os diretores do jornal ajudaria a temperar o tom político da coluna, que se chamou ‘Segunda Seção’ e depois passou a ‘Informe JB’. Eu montei uma rede de informantes que me abasteciam de material precioso para esse tipo de coluna. Na manhã do dia em que saiu a primeira coluna fui acordado cedo por um telefonema do Hélio Fernandes, que saudou um novo colega e me desejou boa sorte com efusão. O gesto me comoveu.
Foi no JB que nasceu o lead?
W.F. – – Não. O lead é norte-americano de nascimento, mas veio para ficar. Passou por variações que fazem parte do jeitinho brasileiro. A imprensa no Rio (e no Brasil) aprendeu a valer-se do lead graças à iniciativa do Diário Carioca. Foi o Pompeu de Souza que, na volta de uma viagem aos Estados Unidos, trouxe a novidade na mala. Os jornais daquela época impressionavam mal. O parque gráfico, ainda nos moldes do século 19, estava anacrônico. E as notícias não ordenavam as informações por ordem de importância.
O senhor tem um pezinho na literatura?
W.F. – Eu queria ser escritor. Cheguei a fazer poesia. Mas a minha estréia em livro rapidamente se converteu num recuo. Antes que me arrependesse, sai recolhendo os exemplares disponíveis. Até hoje, sempre que posso, apago impressões digitais deixadas na literatura. Nas letras, sou um leitor. No JB, aceitamos o desafio de um editor para fazer coletivamente a proeza de aprontar, em um mês, um livro em cima dos acontecimentos de 31 de março de 1964. Acho Os Idos de março e a queda em abril, até hoje, uma iniciativa jornalística que merecia estar em atividade permanente. O livro contou com textos de Antonio Callado, Araújo Netto, Alberto Dines, Pedro Gomes, Carlos Castello Branco, Cláudio Mello e Souza. Eu também contribuí. Fez sucesso porque levantamos todos os aspectos relativos à crise final do governo Goulart. Com um mês de governo militar, o livro estava na rua e vendeu muito.
Que comparação o senhor faz do jornalismo de hoje com o praticado, por exemplo, há 50 anos?
W.F. – O jornalismo é visto com outros olhos. Está diversificado. O jornalismo da televisão é completamente diferente, mas a questão se passa ainda em termos equivocados. Não afetou apenas o público leitor de jornais. Nem os ouvintes que são atendidos pelo rádio. Mais do que o jornalismo, os jornais vão ter que se reinventar. Mas não com o toque de amadorismo que transparece na proposta de abrir o exercício da profissão a quem quiser. O jornalismo de compromisso profissional pede mais do que saber escrever e alinhar frases. Ninguém pode ser jornalista hebdomadário ou duas vezes por semana. Pode ser articulista, mas jornalismo é um pouco mais. A televisão e o rádio não têm fôlego para comentários em cima de raciocínio encadeado. O assunto não cabe numa resposta de entrevista. Acho que o jornalismo tem menos injunções e se tornou indispensável às democracias. As injunções do mercado publicitário não são as de antigamente, mas aumentou também a margem de independência no espaço editorial e, mesmo no departamento comercial dos jornais, há reconhecimento do problema.
O que mudou foi a ilusão de que o mercado pressupõe, como a democracia, liberdade de informação. Nos anos 50, os grandes jornais ainda mantinham ‘lista negra’, com nomes de políticos ou empresários que não podiam ser publicados. No Correio da Manhã, era proibido o nome do Lima Barreto, para citar apenas um. Tudo por causa das Recordações do Escrivão Isaías Caminha, que era a história de um jornal que caricaturava o Correio da Manhã e o jornalismo da época. Nascem e morrem os jornais, mas até hoje os defeitos humanos e os privilégios sobrevivem. O livro foi escrito no começo do século passado, mas mantém atualidade.
Hoje se faz um jornalismo com mais independência?
W.F. – O jornalismo ganhou mais liberdade, mais responsabilidade e mais respeitabilidade do que tinha no passado. Mas perdeu também coragem e convicção. Está perdendo o encanto do tempo da vida boêmia. Jornalistas eram agraciados com carteirinha para entrar em casas de espetáculos sem pagar. O JB ajudou a erradicar esse costume ao bancar as despesas dos seus repórteres e redatores. Não sei se os privilégios estão de volta. Até passagem de avião custava a metade para jornalistas, em serviço ou a passeio. Jornalista que paga se faz respeitar.
O senhor coleciona os artigos que escreveu?
W.F. – Pratico o princípio de não olhar para trás. Meu orgulho é ter participado de todas as eleições diretas desde que foram restabelecidas com a queda do Estado Novo, exceto quando foram suspensas pelos governos militares. Guardo meu primeiro título de eleitor, tirado em 1945. Nunca deixei de votar, porque voto não se joga fora. Voto até em eleição de síndico. O voto é instrumento da cidadania, e não arma.