Começo aqui uma nova seção do Jornal Pessoal. Decidi criá-la ao revirar meus papéis e encontrar uma carta que escrevi, em 27 de dezembro de 1988, ao diretor da Agência Estado, do jornal O Estado de S. Paulo, Rodrigo Mesquita. Acho que é uma maneira bem pessoal de assinalar os 19 anos do assassinato de Chico Mendes, ocorrido em 24 de dezembro de 1988. Fiquei revoltado com a cobertura que o jornal deu ao crime. E decidi expressar esse estado de espírito ao membro da família Mesquita com o qual tinha maior relação e em quem depositava minhas esperanças, no complicado quadro sucessório de uma empresa familiar. Sei que Rodrigo levou em conta a mensagem, transmitida por telex do escritório de Belém do Estadão. Mas, na prática, a iniciativa não teve conseqüência alguma. Pouco tempo depois, desencantado, pedi demissão do jornal, no qual trabalhei durante 18 anos seguidos, tentando colocar nas páginas do mais influente periódico da imprensa brasileira a parte da história da Amazônia que pude testemunhar. Espero que esse documento, como outros, pessoais ou não, ajudem a reconstituir essa história, tão recente e tão distorcida.
Eu não poderia deixar de transmitir-lhe meu protesto e mesmo minha indignação pelo tratamento dado pelo Estado à morte do Chico Mendes. Guardaria para mim esses sentimentos se o critério da edição não fosse o da omissão, adotado nas edições de domingo e segunda-feira (a de hoje só verei à noite). A forma de dar a notícia é competência (ou incompetência) de quem a edita, mas o silêncio – por deliberação proposital ou por ignorância – passa a ser questão de nós todos, sobretudo daqueles que atuam na linha de frente, numa linha de frente marcada por esses assassinatos encomendados, que se realimentam da impunidade e da omissão da imprensa, a única que pode realmente empurrar o governo e forçá-lo a fazer o que não faria de moto próprio.
Diante do tratamento dado pelo Jornal do Brasil, por O Globo (veja só) e mesmo pela Folha de S. Paulo, sem falar no destaque de primeira página do New York Times, muita gente deve estar perguntando pelo que acontece com O Estado de S. Paulo. Muitos, preocupadíssimos com esse inexplicável silêncio. Outros menos, satisfeitíssimos. Afinal, a maior legenda em defesa das liberdades civis, dos direitos do cidadão, dos princípios do liberalismo, da resistência à censura, foi construída em torno de O Estado – e é o que o torna o mais influente jornal brasileiro. Terá ele abdicado de influir em favor da vida, da imposição de padrões civilizados e contemporâneos à maior fronteira de recursos naturais deste país e do mundo, marcada pela selvageria anacrônica do bang-bang. O silêncio de O Estado vale mais contra esses princípios, que o enobreceram, do que todo espaço dedicado pelos demais jornais.
É inconcebível, por qualquer critério de análise que se adote, a insensibilidade na edição de um fato composto por ingredientes explosivos: o primeiro cidadão morto por defender a natureza. Um cidadão que, 15 dias antes, em Piracicaba [interior de São Paulo], despediu-se da comunidade científica dizendo: vou para o Acre e lá morrerei, embora deseje ardentemente viver. Um líder rústico, sem posição ideológica (aderiu ao PT porque foi o único partido a abrir-lhe as portas), que conseguiu ser interlocutor na ONU e no Banco Mundial. O único brasileiro premiado internacionalmente por sua luta em favor da ecologia. Uma pessoa valiosa morta estupidamente por uma família de delinqüentes, que, depois de seis crimes praticados em Minas Gerais e Paraná, ganham status de proprietários rurais porque nos confins da Amazônia se reedita o senhorio medieval, o dono de baraço e cutelo, que impõe relações de vassalagem com os apêndices paroquiais do poder.
É esse mundo selvagem e primitivo, é esse darwinismo social cruel, que faz do 38 a grande lei do faroeste amazônico, o que O Estado ajuda a se manter com seu silêncio, uma postura editorial que compromete seu glorioso passado e as melhores esperanças que redespertou em nós com sua proposta atual de reerguimento. Mas reerguer o quê? Em dois dias de silêncio sobre a morte de Chico Mendes, o jornal dá uma página a um verão metafísico, distante dos paulistas e dos paulistanos, ainda mais enervados por uma chuvarada bíblica. O jornal se contorce editorialmente para sustentar essa saison, ensinando como ir à praia num verão chuvoso (mergulhando, por exemplo?) e simplesmente ignora o Brasil real, dos sertões (Euclides da Cunha, redivivo, seria mandado para o sertão, hoje?).
Acho que posso estar indo além de minhas barras jurisdicionais, mas quem passou quase 18 anos dentro deste jornal, procurando sempre fazer um jornalismo digno, expondo-se a todos os riscos que uma cidadela jornalística representa nesta selva selvaggia, não poderia assistir calado. Peço-lhe que repasse este protesto aos companheiros. Acho que se este jornal não rever este seu erro, admitindo-o e adotando providências para repará-lo, deixará de ser interessante trabalhar nele. Você bem sabe, porque tem dado esse estímulo a nós, que nenhum jornalista digno do nome trabalha movido apenas por um bom salário. Necessário, mas não suficiente.
Um abraço consternado do Lúcio Flávio Pinto.
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Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)