Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O sindicalista e o dono de jornal

Nos idos de 1978, o atual presidente da República era um líder sindical em ascensão. À época, Luiz Inácio da Silva, o ‘Lula’ (o apelido ainda não havia sido incorporado ao seu nome), liderara os metalúrgicos no ABC paulista numa greve histórica. A partir de então, tornara-se um dos principais protagonistas da nova cena política que começava a desenhar o começo da agonia do regime militar, que sobreviveria até 1984.

Em junho daquele ano, o jornalista Ruy Mesquita, hoje diretor do jornal O Estado de S.Paulo, gravou uma longa entrevista – quatro horas – com o então sindicalista a pedido de Luís Carta, diretor da revista Vogue Senhor. A revista publicou a matéria, mas de forma resumida. Vinte seis anos depois, Mesquita cedeu a íntegra da transcrição da entrevista ao jornalista Renato Delmanto, editor-executivo do portal AOL, que a publicou na Revista AOL (www.aol.com.br) na sexta-feira (17/9). Eis um trecho do relato de Delmanto:

‘Em junho de 1978, o então diretor do Jornal da Tarde, Ruy Mesquita, fez uma histórica entrevista com o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, Luiz Inácio da Silva. A idéia da entrevista surgiu após Mesquita ter assistido à participação de Lula no programa Vox Populi, da TV Cultura. Mesquita comentou com Luís Carta, proprietário da Carta Editorial, que ficara impressionado com o surgimento de um líder proletário autêntico, ‘incontaminado política ou ideologicamente’. No dia seguinte, o amigo Luís Carta pediu a Mesquita (‘meio à traição’, lembra) que entrevistasse Lula, então com 32 anos, para a revista Senhor Vogue. Apenas uma pequena parte do material foi publicada. Passados 26 anos, Ruy Mesquita, hoje o patriarca da família proprietária do Grupo Estado, entregou com exclusividade à AOL as 139 laudas com a transcrição das quase quatro horas de conversa com Lula.

‘O material é riquíssimo, não apenas pelo fato de Lula ter se tornado presidente da República. É precioso principalmente por dissecar o pensamento do então sindicalista e por mostrar como surgiu aquele movimento operário em pleno governo militar, independentemente de partidos ou lideranças políticas estabelecidas. É um documento histórico, que retrata uma época em que as instituições, ainda traumatizadas por 14 anos de ditadura militar, tentavam reaprender a conviver com as liberdades democráticas.

‘O Brasil vivia os últimos meses do governo do general Geisel e estava em curso o projeto de abertura lenta e gradual. Havia apenas dois partidos políticos, a governista Arena, e o MDB, de oposição. A imprensa recomeçava a experimentar certa liberdade, três anos depois do assassinato do jornalista Vladimir Herzog nos porões do DOI-Codi, em São Paulo. Mas ainda havia o ranço da censura, tanto que a entrevista de Lula à TV Cultura por pouco não foi vetada pelos militares.’

A íntegra da matéria de Renato Delmanto pode ser lida em (http://noticias.aol.com.br/revista/2004/0045.adp). A seguir, o OI reproduz o excerto em que Lula comenta sua postura com a imprensa, que então o recém-descobrira como fonte. (L.E.)



‘Comecei a enfrentar a imprensa sem medo’

Em pleno início de abertura política, em que o país saía da fase de censura, a greve [dos metalúrigicos do ABC paulista] de 1978 fez com que Lula se tornasse uma espécie de vedete de jornais e revistas. Apesar da ajuda que recebeu da imprensa para ganhar notoriedade, Lula criticava a atuação de alguns profissionais, que segundo ele retratavam de forma preconceituosa a classe trabalhadora. ‘A concepção [que a mídia] tem de trabalhador é que ele tem de ser miserável, ele tem que morar em barraco’, dizia.

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Ruy Mesquita – O trabalhador lê jornal?

Lula – Veja, se nós analisarmos o trabalhador como um todo, ele não lê jornal. Eu acho que em todas as camadas sociais não são todos os que formam opinião. Eu acho que os trabalhadores que formam a opinião da classe trabalhadora lêem jornais.

Ruy Mesquita – Quando você falasse da imprensa eu gostaria até que você me ajudasse.

Lula – Eu costumo sempre lembrar a imprensa como fator muito importante; a gente lembra, por exemplo, a época em que o Estado e o Jornal da Tarde publicavam muito aquelas receitas de arte culinária, aquele negócio todo [quando algum texto era censurado, mesmo na primeira página, os veículos publicavam receitas ou trechos dos Lusíadas para que os leitores percebessem o que havia ocorrido]. E eu lembro que muitas vezes o único jornal que nós comprávamos no sindicato era o NP [Notícias Populares, hoje extinto, do Grupo Folha, ], que tinha uma notinha pequenininha de um jornalista que falava de sindicato. Inegavelmente, de fim de 1975 ou começo de 1976 para cá, a imprensa começou a ficar mais livre, e eu acho que a imprensa descobriu o trabalhador. E daí aconteceu tudo o que aconteceu até hoje.

Ruy Mesquita – Você não pode negar que teve uma projeção muito maior por causa da imprensa.

Lula – Eu acho que a imprensa é uma ajuda importante que eu tive. Mas se ela deixar de existir hoje, nós vamos continuar fazendo a mesma coisa. Eu nunca fiz a coisa em função da imprensa.

Ruy Mesquita – Vocês não têm um departamento de relações públicas com a intenção de divulgar regularmente o que vocês fazem, o que vocês pretendem?

Lula – Eu acho que seria muita sofisticação um sindicato de trabalhadores ter, por exemplo, uma assessoria de imprensa. Partindo do pressuposto de que caberia – pelo menos a mim, dirigente sindical – exercer uma influência de honestidade em cima da imprensa, não permitir que o jornalista escrevesse aquilo que pensa, mas escrevesse pura e simplesmente aquilo que eu queria dizer. Eu comecei a ter muitos contatos com jornalistas e comecei a fazer não coisas novas, mas eu comecei a enfrentar a imprensa como ela deveria ser enfrentada: sem medo, sem nenhum objetivo de me tornar uma vedete ou coisa parecida. Mas eu passei a ter a coragem de responder àquilo que a imprensa me perguntava – o que até então não acontecia no movimento sindical.

Ruy Mesquita – Deixa eu contar a nossa parte. Você chegou aqui em São Paulo há 20 anos. Você não sabe o que foi o Estado de S.Paulo, não sabe o que foi a nossa luta, não sabe pelo que nós passamos e você pensa que tivemos a vida tranqüila. O meu pai foi preso 17 vezes, foi exilado 8 anos, perdeu o jornal em nome dos princípios que ele defendia. Nós estivemos sem nada, o que nós temos até hoje é o Estado de S.Paulo e nada mais. (…) Eu lhe digo: se o Estado de S.Paulo amanhã falir, eu estou falido junto porque não tenho um tostão fora do Estado. Você pode estar certo de uma coisa, Sr. Lula, você pode concordar ou não com as nossas opiniões, mas você pode estar tranqüilo quanto à sinceridade delas.

Lula – Eu acho que não cabe a mim concordar ou não concordar.

Ruy Mesquita – Você está num campo e nós estamos em outro, é evidente.

Lula – Chega um pessoal [de uma revista semanal] no sindicato: ‘Pô, a gente precisava pegar um trabalhador’. Então eu peguei um ferramenteiro da Volks e falei: ‘Vai entrevistar o rapaz na casa dele’. Então foram lá. E chegou lá o fotógrafo: ‘Ah, pombas, eu não vou fotografar a sua casa, porque a sua casa tem carro, isso não é trabalhador’. A concepção [que a mídia] tem de trabalhador é que ele tem de ser miserável, ele tem que morar em barraco. É uma concepção errada que se faz do trabalhador, gente. Tem trabalhador que tem casa realmente luxuosa na capacidade do trabalhador. É o mínimo que ele quer de conforto.