Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O espírito da ditadura está vivo

As análises que abundam nos jornais sobre os idos de 1964 evitam algumas questões essenciais para o entendimento do que foi o período inaugurado pelo golpe. A principal lacuna é percebida na questão econômica: durante anos, a própria imprensa alimentou, por convicção ou omissão, o mito de que o regime militar havia produzido a modernização da economia brasileira, e o conto do “milagre econômico” foi instaurado como verdade histórica.

Outro ponto que está a merecer esclarecimentos é o papel jogado pelo Partido Comunista Brasileiro e pela representação política da socialdemocracia em episódios cruciais que levaram ao desfecho catastrófico de 50 anos atrás. Nota-se no conjunto das análises certa omissão quanto ao papel histórico do PCB e seus sucedâneos – como representação simbólica da chamada esquerda clássica – na eclosão do golpe militar e nos eventos que radicalizaram o poder ditatorial. Essa instituição, hoje associada ao que há de mais conservador na política nacional, tem uma história repleta de traições e autoritarismo, com decisões arbitrárias que muitas vezes foram usadas para justificar a violência do regime de exceção.

Quanto à socialdemocracia, é preciso lembrar que foi a adesão oportunista do PSD à proposta de declarar vaga a cadeira do presidente da República, em 1º de abril de 1964, que deu ares de legalidade ao golpe. A socialdemocracia foi eficiente no processo de desconstrução da ditadura, ao atuar como amplo guarda-chuva na campanha das Diretas Já e ao arbitrar interesses na Constituinte de 1986-88, mas foi sob suas asas complacentes que se consolidou o poder do chamado “baixo clero” do Congresso Nacional, onde a corrupção se institucionalizou.

Uma terceira questão se refere à cultura da violência, implantada no ethos brasileiro, ou seja, o conjunto dos valores com os quais a sociedade produz a harmonia necessária ao seu bom funcionamento.

A tortura “democrática”

O leitor atento e crítico poderia perguntar: o que a imprensa tem a ver com essas questões? A resposta fica muitas vezes dissimulada pela ilusão de que o jornalismo tem sido aquilo que se pretende que seja: um exercício de objetividade. E, objetivamente, pode-se afirmar que a imprensa brasileira atuou, em todos estes anos, no sentido de amenizar a imagem da ditadura perante a História.

Não fosse pelo erro de impor uma censura atrabiliária sobre os jornais, e os governos militares teriam contado com uma complacência ainda maior na interpretação de suas decisões políticas e econômicas.

Observe-se, por exemplo, como os ministros que conduziram a estratégia econômica do regime de exceção foram transformados em gênios da raça, ainda que tenham produzido uma sociedade desigual ao arrochar salários e endividar irresponsavelmente o Brasil.

Nunca se viu a imprensa brasileira dedicar ao escândalo da negociação da dívida externa, conduzida de maneira criminosa pelo Executivo durante o regime militar, uma fração mínima do barulho que se faz quando se trata de malfeitos durante os governos posteriores, e em especial naquilo que refere ao Poder Legislativo eleito democraticamente. A censura deixou de ser desculpa há quase trinta anos.

Já o problema da violência oficial, herança maldita do período do arbítrio, aparecem aqui e ali observações de articulistas. Na terça-feira (1/4), finalmente, um dos grandes jornais – O Globo – dedica uma página inteira a analisar o efeito da violência institucional da ditadura na formação dos agentes públicos a serviço do governo democrático. Segundo o jornal carioca, a tortura segue sendo uma prática comum nas relações das autoridades policiais com suspeitos. Especialistas citados afirmam que a democracia não conseguiu romper a herança das práticas arbitrárias que colocam o suposto delinquente na condição de “inimigo interno”.

Essa mesma mentalidade contamina a cultura da sociedade brasileira, e está na origem de opiniões retrógradas como a defesa da pena de morte, posturas ambivalentes e conservadoras sobre direitos das mulheres e na ânsia pela criminalização de crianças e adolescentes.

Da mesma forma, esse resquício da ditadura coloca nas mãos de agentes despreparados um poder absoluto sobre a vida dos cidadãos que não contam com acesso à Justiça, alargando o campo de atuação do crime organizado e da corrupção.

Essas mazelas conservam entre nós o espírito da ditadura.