Está em andamento a produção da minissérie da Rede Globo de Televisão sobre Juscelino Kubitschek, que a história do país registra como o presidente dos ‘Anos Dourados’. Juscelino, além disso, foi o presidente que idealizou Brasília, e, como estadista, contribuiu para o progresso da industrialização no país, ainda que com a ajuda de capital e empresas estrangeiros.
O governo de Kubitschek, mesmo por coincidência, foi o período em que o país viveu algumas façanhas. As mais famosas foram a primeira vitória da Seleção Brasileira de Futebol na Copa do Mundo da Suécia, em 1958, e a ascensão mundial da Bossa Nova, um ritmo que juntava influências do samba carioca e a música romântica popular de Hollywood, com alguns elementos de jazz. Também se discutia cinema brasileiro, em busca de uma identidade e expressividade próprias, e o rock, como em qualquer parte do mundo, se tornava um ritmo cada vez mais popular entre os jovens de então.
É um engano dizer que o Brasil entrou numa era de prosperidade na virada dos anos 50 para os 60 do século 20. Tal idéia é fruto, porém, de uma espectativa exagerada mas compreensível, afinal o Brasil só havia entrado efetivamente na sua revolução industrial naquela época, depois de séculos de colonialismo que os avanços promovidos pelo Primeiro e Segundo Império não conseguiram fazer superar o complexo de inferioridade sofrido pelo país.
O que aconteceu naqueles ‘Anos Dourados’ foi simplesmente uma grande promessa. Eram os ’50 anos em 5′ prometidos por Kubitschek, que despertaram no povo um sentimento inédito de otimismo, que favoreceu o auge da cultura popular brasileira, com o aparecimento de novas propostas e uma evolução no pensamento intelectual que procurava superar o trato paternalista e etnocêntrico às culturas das classes mais pobres.
Mas o governo de Kubitschek foi marcado pela tensão política. Ele mesmo quase não foi empossado, por causa de um plano no qual estavam envolvidos o então presidente Carlos Luz (presidente da Câmara dos Deputados em 1955, que substituiu o licenciado Café Filho, que era vice de Getúlio Vargas e o substituiu após o célebre suicídio do gaúcho) e o jornalista Carlos Lacerda, plano de um possível golpe que foi evitado pelo golpe preventivo de Teixeira Lott. Houve outros dois golpes militares (um em Jacareacanga, Pará, em 1956, e outro em Aragarças, Goiás, em 1960) que, fracassados, foram beneficiados no entanto pela anistia dada por Juscelino.
Kubitschek governou sob intensa oposição da grande imprensa brasileira, e entre outras queixas se destacava justamente a relacionada à construção de Brasília. Alegava a imprensa oposicionista que o projeto era um desperdício de verbas públicas, uma obra faraônica sem qualquer serventia, já que, segundo a oposição, o Rio de Janeiro, por sua fama mundial, já era auto-suficiente como capital política do Brasil.
Foi a imprensa oposicionista que, apesar do carisma e da popularidade do ‘presidente Bossa Nova’, conseguiu evitar que o candidato apoiado por JK, o mesmo marechal Henrique Teixeira Lott que o salvou do ‘golpe branco’ de Luz e Lacerda, fosse eleito. Em lugar de Lott, um professor mato-grossense radicado em São Paulo, de personalidade excêntrica e perfil conservador e populista, Jânio da Silva Quadros, venceu as eleições presidenciais, fazendo um governo confuso que, aos olhos da nação, adotava medidas conservadoras e rígidas na economia, enquanto que, nas relações exteriores, procurava passar a imagem de um ‘governo independente’. Jânio Quadros cortejava a esquerda soviética e cubana, tendo recebido o astronauta russo Yuri Gagarin (que em 1961 ficou em órbita sobre a Terra) e, depois, o ministro da Economia de Cuba, o famoso guerrilheiro Ernesto Che Guevara, que recebeu a medalha da Ordem do Cruzeiro do Sul (considerada de grande prestígio), irritando a direita brasileira e seus representantes na imprensa.
Nessa época, o então senador Kubitschek já planejava voltar à presidência e estrear um mandato inteiro governando de Brasília, onde governou apenas no fim de seu mandato (descontando o escritório no Catetinho, sede provisória do governo numa cidade em construção), alguns meses após a inauguração, em 21 de abril de 1960.
Rede da Democracia
Para os conservadores, preocupava tanto o perfil oblíquo de Jânio Quadros quanto o trabalhismo de seu vice João Goulart – que havia sido vice na chapa de Lott mas que, com as eleições em separado para vice-presidente da República, foi eleito para acompanhar Jânio no poder –, daí os planos secretos de golpe militar que já ocorriam nos bastidores. Renunciando Quadros, no Dia do Soldado, os oficiais fizeram o possível para evitar a posse de Jango, enquanto seus defensores promoviam a Campanha da Legalidade, apoiada por grande rede de rádios encabeçada pelas cariocas Nacional e Mayrink Veiga, e tendo o então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, como seu porta-voz maior. Jango teve a posse garantida, mediante um acordo de políticos parlamentaristas – entre eles, o gaúcho Raul Pilla, do Partido Libertador – e seu governo viveu uma fase parlamentarista que durou até 1963, embora inicialmente estivesse prevista até 1965.
No entanto, a tensão política que marcou todo o governo João Goulart fez com que ele fosse abreviado prematuramente. A volta ao presidencialismo com Jango no poder significou uma reação violenta da direita e uma pressão maior dos diversos segmentos de esquerda. Os primeiros acusavam Jango um comunista e os segundos, um moderado frouxo, incapaz de cumprir suas promessas de reforma de base. Conta o historiador Moniz Bandeira, em seu livro sobre Jango, que tanto direita quanto esquerda tinham milícias em treinamento, sendo a direita financiada pelo Departamento de Estado dos EUA.
A idéia do golpe militar foi difundida pela Rede da Democracia – um pool entre as Organizações Globo, o Jornal do Brasil e os Diários Associados, com a adesão de Carlos Lacerda, que tinha espaço nos veículos de Roberto Marinho, Nascimento Brito e Assis Chateaubriand – como uma ‘solução’ para o instável governo Goulart. Mesmo alguns setores democráticos da sociedade brasileira, além de alguns artistas e intelectuais, passaram a defender o golpe, acreditando que depois dele haveria um governo militar provisório, para no prazo de no máximo dois anos o poder seja entregue novamente a um civil.
Inimigos unidos
Juscelino defendeu a derrubada do governo de Jango imaginando que os militares permitiriam uma nova corrida eleitoral, na qual o ex-presidente seria eleito. Provavelmente haveria uma disputa entre Kubitschek e Lacerda, que também apoiou o golpe visando tal possibilidade – e os dois teriam um acalorado debate nos meios de comunicação, talvez ao lado de outros candidatos.
Ocorrido o golpe, instalou-se a ditadura, e Castelo Branco, considerado um legalista, foi nomeado presidente. Havia uma quase certeza de que o governo militar duraria apenas um ano ou pouco mais, mas as pressões da linha-dura das Forças Armadas, sob o pretexto de prevenir uma ‘ainda existente’ ameaça comunista, prorrogaram o regime. Naquela época, todavia, o governo militar se autodefinia como ‘democrático’ e as atitudes repressivas e censoras eram justificadas pela necessidade de ‘preservar a ordem e a integridade nacional’, além da ‘salvaguarda da democracia’.
Com os primeiros anos da ditadura, Juscelino não somente viu morrer a esperança de ser novamente presidente, na sua primeira chance de exercer todo o mandato numa Brasília já em funcionamento, como viu morrer sua vida política, com seus direitos políticos cassados. Teve que se exilar na Europa. Em Lisboa, em novembro de 1966, Juscelino recebeu seu antigo adversário político, Carlos Lacerda (já com experiência de governador da Guanabara), e os dois, esquecendo as divergências, se uniram para um projeto de movimento de redemocratização do país, a Frente Ampla. Os dois contaram também com o apoio de João Goulart, exilado no Uruguai. Mas os três políticos não tinham popularidade suficiente para levarem o projeto adiante e, em abril de 1968, a ditadura militar determinou a extinção da Frente Ampla, por considerá-la ilegal e por nela estarem envolvidos políticos cassados pelo regime.
Operação Condor
Conta o escritor e acadêmico Josué Montello, no seu livro de memórias Diário do entardecer – o segundo de uma série – um episódio controverso da vida de Kubitschek. Em 1968, sofrendo sério drama político, pois, além de ter os direitos políticos cassados, era desmoralizado pela ditadura, com a ameaça de ter seu apartamento no Rio confiscado pela União, JK havia pensado na idéia de suicídio. A divulgação desse fato, em 1988, provocou reações negativas, entre as quais a de alguém escrever um livro inteiro contra Josué Montello. No entanto, esta ameaça não se concretizou, assim como JK não se suicidou.
Outro episódio relatado por Montello foi a campanha para a eleição de Juscelino para a Academia Brasileira de Letras, em 1975. Ele não venceu a campanha, já que os membros da academia, cautelosos, sentiram a pressão do governo militar, que viu na candidatura de JK a uma cadeira na ABL uma rebelião política contra a chamada ‘revolução’.
O último e trágico infortúnio de Juscelino foi o acidente que o matou, em 22 de agosto de 1976. Em circunstâncias estranhas, pois aparentemente a estrada estava em boas condições e era um dia de sol, além do fato de seu motorista, Geraldo Ribeiro (também morto no desastre), ter sido durante anos o chofer de confiança de JK. Há uma versão que atribui o acidente a possível atentado encomendado pela Operação Condor (na qual teriam se envolvido governos militares sul-americanos). Segundo esta hipótese, o vice de JK, Jango, teria morrido de possível envenenamento, o que talvez haja ocorrido com o ex-rival político de ambos, Carlos Lacerda. Investigações ainda não se concluíram para desmentir ou confirmar a presumida associação destas mortes à Operação Condor.
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Jornalista