Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Os jornalistas e o golpe de 1964

A partir do governo JK o esteio da imprensa mudou. Se antes era o Estado, os classificados e as lojas comerciais, depois ganharam espaço as grandes empresas, multinacionais inclusive. Os jornais passaram a obter 80% de sua receita da venda de anúncios. Surgiram as agências de publicidade. ‘Á medida que avançava o desenvolvimento industrial e aumentava o peso da publicidade, a imprensa foi se tornando cada vez menos dependente do poder público’ [ABREU, Alzira Alves de. A modernização da imprensa, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, páginas 9 e 10]. Mas talvez mais subserviente ao capital privado.


A maior parte da grande imprensa participou do movimento que derrubou o Presidente João Goulart e ‘foi, sem dúvida, um dos vetores de divulgação do fantasma do comunismo, que foi utilizado como uma das justificativas para derrubada do governo’ [ABREU, Alzira Alves de. ‘A participação da imprensa na queda do governo Goulart’. In 1964 -2004. 40 anos do Golpe. Rio de Janeiro: 7letras, 2004. Página 15]. A imprensa também disseminou a existência de um caos administrativo e também a idéia de que era imperiosa a necessidade de restabelecer a ordem por meio de uma intervenção militar [idem].


No início de 1964, já estava a todo vapor a campanha para derrubar o Presidente João Goulart. Para obter apoio ao futuro Golpe, espalhava-se o medo do comunismo, o ‘bicho-papão’ da época. O presidente-estancieiro era praticamente transformado num bolchevique (sic). Dois meses e dez dias antes do Comício da Central, o artigo do economista Eugênio Gudin, publicado em O Globo, acusava Jango de promover a bolchevização do Brasil. Gudin parecia estar profundamente decepcionado com o fato do congresso e das forças armadas ainda não terem rompido com a normalidade constitucional:




Estão, portanto, de parabéns, no limiar deste ano, os brasileiros que conseguiram transpor 1963 e emplacar 1964 surrados e empobrecidos, é verdade, mas ainda em plena capacidade de defesa (…) Mas nunca tivemos, de meu conhecimento, na República ou no Império, um governo tão encarniçadamente decidido a destruir, desmoralizar e até prostituir tudo quanto neste país existe de organizado. (…) o dito Sr. João Goulart ainda não conseguiu, ao fim de dois anos e meio (…) malgrado seu esforço ininterrupto, bolchevizar o Brasil. Não se lhe pode negar, como bem afirmou há poucos dias o Sr. Sobral Pinto, ter iniciado essa bolchevização. Pelo jeito, parece que o Brasil, seja por apego à legalidade (mesmo a mais depravada), seja por inércia ou comodismo, resolveu agüentar – com o Sr João Goulart na presidência dando uma demonstração da solidez e da resistência das instituições diante das investidas partidas do mais forte de seus três poderes. Que bom proveito lhe faça essa decisão que está custando ao país os maiores sacrifícios em termos de desassossego, de empobrecimento e de desorganização. Com mais dois anos, se até lá chegarmos, o país estará em frangalhos. Terá sido o preço que os brasileiros, especialmente o congresso e as forças armadas se dispuseram a pagar para salvar as aparências (…) ‘enquanto o Brás é tesoureiro’ as pequenas delícias da vida cotidiana com inflação e tudo. [Eugênio Gudin. O Globo, 3 de janeiro de 1964]


O ‘Basta!’ e o ‘Fora!’


O Globo ganhou maior importância durante a ditadura, pois naquele tempo havia outros grandes veículos na imprensa carioca, e em sua maioria também apoiaram o Golpe. São famosos os editoriais do Correio da Manhã, o ‘Basta!’ e o ‘Fora!’. E um dos aspectos mais interessantes neste episódio é o perfil dos jornalistas supostamente envolvidos. Um exemplo é Edmundo Moniz: homem de esquerda, ex-militante trotskista e profundo estudioso da obra de Bertolt Brecht. Historiador, poeta, teatrólogo e ensaísta. Membro do IHGB, Edmundo Moniz foi professor de história e de filosofia, mas é tido como um dos responsáveis pelos editoriais ‘BASTA!’ e ‘FORA!’ do Correio da Manhã:




Os quatro principais redatores de editorais do Correio da Manhã nesses dias eram Edmundo Moniz, Osvaldo Peralva, Newton Rodrigues e Otto Maria Carpeaux. A redação do ‘Basta!’ é freqüentemente atribuída a Moniz, que coordenava o trabalho de seus colegas, a quem cabia a decisão final sobre os textos. Moniz e Peralva negaram, em conversas separadas, em agosto de 1988, que o tivessem redigido, embora admitissem que o tivessem discutido. Carpeaux morreu em 1978. Nem Moniz nem Peralva insinuaram que ele fosse o redator. Em julho de 1999, o jornalista Carlos Heitor Cony, contou-me que a base do editorial, na sua primeira versão, foi manuscrita por Carpeaux. Submetida a Moniz, começou um processo de redação conjunta, da qual participaram ele, Cony, Carpeaux e Moniz. Cony informa que o tom do texto pode ser atribuído a ele e a Carpeaux. ‘Na boa técnica da produção dos editoriais, esse foi resultado de um trabalho coletivo. Entraram idéias de diversas pessoas. Um bom editorial, em termos de autoria, é coletivo como uma catedral gótica’ [GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das letras, 2002. Página 65].


Em artigo publicado na Folha de S.Paulo, em 30/11/02, Cony tenta explicar o episódio. Inicialmente afirma que ‘até hoje não se sabe quem escreveu o ‘Basta’ e o ‘Fora’, atribuídos a Edmundo Moniz, o nosso redator-chefe’. Cony continua:




Elio realmente me perguntou sobre o assunto e eu disse o que sabia. O jornal vinha combatendo o governo de João Goulart, que entrava em decomposição, criando um cenário que poderia descambar numa guerra civil. (…) Na crise de 1964, os editoriais eram discutidos exaustivamente pela equipe liderada por Moniz e da qual faziam parte Otto Maria Carpeaux, Osvaldo Peralva e Newton Rodrigues, entre outros. Eu estava recém-operado, no meu apartamento em Copacabana, e Edmundo Moniz, que ia me visitar todos os dias, telefonou-me para comunicar que Carpeaux desejava pisar forte, com um editorial virulento contra Jango. O próprio Carpeaux sugerira que Moniz me consultasse, uma vez que nós dois éramos afinados, tanto em política como em literatura. Minha participação limitou-se a cortar um parágrafo e acrescentar uma pequena frase. Hora e meia mais tarde, Moniz telefonou-me outra vez, lendo o texto final que absorvia a colaboração dos editorialistas, e, embora o conteúdo fosse o piloto elaborado por Carpeaux, a linguagem traía o estilo espartano do próprio Moniz. Como disse ao Elio Gaspari, um bom editorial é obra coletiva como uma catedral gótica. Não expressa o pensamento de um indivíduo, mas o clima de uma época.


Essa informação, da construção coletiva destes editoriais, não é exatamente nova. Edmundo Moniz, em entrevista concedida ao jornal Folha de S. Paulo em 12 de janeiro de 1979, afirmou:




Eu só sou autor daquilo que eu assino (…). O artigo foi feito pela redação e eu não posso dizer o autor dos artigos, eles são de responsabilidade do jornal. Aqueles dois editoriais foram muito alterados, talvez fossem escritos por muita gente. Não escrevi o artigo, mas o alterei. Toda a redação mexeu [http://almanaque.folha.uol.com.br/memoria_8.htm].


Uma das últimas versões desta foi escrita por Getulio Bittencourt em 23/11/2004:




A obra de Gaspari não menciona entre os autores desses textos coletivos o nome de Antônio Moniz Vianna, que foi redator-chefe do jornal entre as gestões de Antônio Callado e Edmundo Moniz (..). Os dois editoriais no entanto lembram mais a severa indignação de Moniz Vianna do que os textos mais contidos de Peralva ou Cony. Num artigo publicado há alguns anos em O Estado de S. Paulo, outro egresso do Correio da Manhã, Ruy Castro, atribui a escritura dos dois editoriais a Moniz Vianna. (…) resolvi perguntar ao próprio Moniz Vianna, que está não só vivo como lúcido em seu apartamento no Rio. Ele se lembra de alguns detalhes: escreveu o texto final dos dois editoriais, e deu os títulos a ambos. As versões preliminares eram de Osvaldo Peralva, que abandonara o Partido Comunista Brasileiro por horror ao stalinismo. Ao liberal Carpeaux não agradava a idéia de derrubar governos em geral, e ao esquerdista Edmundo Moniz desagradava a idéia de derrubar um governo pelo menos simpático à esquerda. Por ser médico além de jornalista, Moniz Vianna recebeu vários telefonemas de Cony naqueles dias. Cony não participou da redação dos editoriais porque estava acamado, recuperando-se de operação na vesícula. Moniz Vianna era para ele uma fonte dupla, sobre o descontrole militar e sobre a vesícula operada [http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod04JDB004 Acessado em 15/08/2006].


Talvez nunca consigamos recuperar completamente a história da redação destes editoriais, mas é interessante notarmos que pouco depois do Golpe o Correio da Manhã e seus jornalistas passaram a fazer críticas ao regime. O caso do Correio é extremo e emblemático. De forma geral, a maior parte dos jornalistas apoiou o Golpe. Logo depois, uma parcela deles começou a criticar a ditadura. Como e porque esta transformação ocorreu? Parece-me que de maneira crescente, os jornalistas, escritores etc. que apoiaram a derrubada de Jango, foram sentindo-se desconfortáveis com as cassações, perseguições e com a falta de liberdade de opinião, severamente tolhida pelo novo regime. A transformação ocorrida com Carlos Heitor Cony exemplifica o que se passou com alguns profissionais da imprensa:




‘No dia 31 de março, eu estava convencido de que o Sr. João Goulart havia abusado demais e que sua deposição era indispensável. Mas, quando fui para a rua, dia seguinte, e vi, em Copacabana, as pessoas que saudavam a Revolução, comecei a duvidar das minhas convicções’ [MOREL, Edmar. O Golpe começou em Washington. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, página 165].


Para os colegas seus artigos:




Eram a janela aberta pela qual respiravam os prisioneiros. (…) Homens de imprensa, arrancados das redações pela polícia, e outros, em maior número, privados de escrever suas colunas, por conivência dos donos de jornais com os donos da revolução, na hora mais dramática do Brasil, com suas liberdades garroteadas, transferiram para o jovem comentarista a sua pena de escorraçados por militares e patrões. Cony representava, ainda, os seus colegas que ficaram sem pão para a família, com seus semanários fechados e impossibilitados de circular’ [idem].


Os jornalistas disseram sim!


A atuação da imprensa não foi uniforme durante toda a ditadura. Muitos jornalistas que apoiaram o Golpe, em algum momento depois foram adversários do regime militar. Isto, somado ao interesse de construir a memória da atuação dos jornalistas, permitiu que uma outra versão dos fatos fosse contada. Um excelente exemplo disto é o livro O golpe de 64: a imprensa disse não, organizado pela jornalista Thereza Cesário Alvim, e publicado quinze anos depois acontecimento, em 1979, ano em que a ditadura já estava sendo desmontada e o país vivia a abertura e a anistia.


Para a confecção deste livro foram escolhidos artigos de jornalistas, escritores, poetas e cronistas como Alceu de Amoroso Lima, Antônio Callado, Carlos Drummond de Andrade, Carlos Heitor Cony, Edmundo Moniz, Newton Rodrigues, Otto Lara Resende, Otto Maria Carpeaux, entre outros. Grande parte dos jornalistas que tiveram suas crônicas coletadas para este livro foram aqueles que logo se arrependeram do apoio dado ao golpe. Um bom título para este volume, excetuando os que foram contra o regime desde o início, talvez fosse ‘os arrependidos’.


Mas apesar do título, o apoio ao Golpe e o posterior arrependimento ficam bem claros logo na introdução da obra, onde há um trecho especialmente elucidativo escrito pela organizadora do livro, Thereza Cesário Alvim:




As cabeças mais pensantes deste país horrorizaram-se com a idéia, maliciosamente generalizada e difundida, de um Ministério festivo, de um presidente que, se não participava da algazarra, convivia com ela. Admitindo a existência de um caos administrativo e de uma situação política insustentável, muitas dessas pessoas acabaram dando, além de ouvidos, um voto de confiança à velha e hipócrita senhora UDN. [Thereza Cesário Alvim, O golpe de 64: a imprensa disse não, Civilização Brasileira, 1979, página 8]


Desde quando Ministério festivo é justificativa para golpe? Que governo resistiria se assim fosse? Quais foram essas ‘cabeças mais pensantes’ enganadas ‘pela senhora UDN’? A tradição golpista da UDN já não era suficientemente conhecida? As cabeças pensantes comprometidas com o projeto de uma sociedade mais democrática e igualitária não teriam combatido o Golpe desde o primeiro instante? Uma parte da imprensa, posteriormente, pode até ter dito não à ditadura, mas na hora H a maioria dos jornalistas brasileiros disse sim ao Golpe de 1964.


Thereza Cesário Alvim não conseguiu deixar de admitir que a imprensa apoiou o Golpe, embora tenha enxergado ‘a formação na imprensa carioca de uma posição vigorosa e sistemática aos desmandos da nova situação’. Esta ‘vigorosa oposição’, segundo ela, viria de ‘brechas abertas’ no Jornal do Brasil e no tablóide mensal Brasil em Marcha. Thereza Cesário Alvim admite, no entanto, que o mesmo Jornal do Brasil, que permitia aquela ‘vigorosa e sistemática oposição’, estava ‘perfeitamente adaptado ao novo regime’.


Thereza Cesário Alvim afirmou que o artigo Volta o barril, de Antônio Callado, foi censurado no Jornal do Brasil. Em seu artigo de 1964, coletado e publicado, em O golpe de 64: a imprensa disse não, Antônio Callado enxerga os acontecimentos como se a ‘revolução’ estivesse apenas se degenerando. A derrubada de Jango teria sido correta, mas a ‘revolução’ estaria dando maus passos: a deposição de Jango seria adequada porque ‘o Brasil descia sem freios uma encosta que ia dar no caos’.


O artigo Volta o barril, de Antonio Callado, foi publicado em 12 de abril de 1964, no Correio da Manhã. Segundo Thereza Cesário Alvim, depois de ter sido recusado no Jornal do Brasil. Alberto Dines nega que ele tenha censurado Antonio Callado. Segundo Dines, a relação de Callado passava por cima dele, era direto com os proprietários do jornal. Essa informação faz sentido, pois Callado já era um profissional muito experiente e renomado. Já Alberto Dines, com pouco mais de 30 anos, assumiu a redação do Jornal do Brasil no início de 1962, indicado pelo banqueiro José Luiz Magalhães Lins. [CONTI, Mário Sérgio. Notícias do Planalto. Companhia das Letras, 1999]


Antonio Callado estava descontente com o regime militar, mas parecia apreciar o Presidente Castello Branco. Confiava, inclusive, na regeneração, por dentro, da ditadura militar: ‘É difícil calcular, desde já, que força real terá o General Castello Branco na Presidência desta pobre República (…). Se tiver alguma, vai ter de rever muita coisa’ [Thereza Cesário Alvim, O golpe de 64: a imprensa disse não, Civilização Brasileira, 1979, página 31].


Alguns jornalistas que apoiaram o golpe de 64, antes dele fazer aniversário, já eram adversários do regime que de certa forma ajudaram a instalar. Ao perseguir figuras que nada tinham de comunistas ou subversivas, eram apenas liberais e até apoiaram o golpe, a ditadura, por assim dizer, perdia a razão. Ao que parece, figuras como o colunista social Ibrahim Sued aceitavam a repressão e a perseguição a um subversivo, mas não a um homem, como Antônio Callado, que apoiou a ‘revolução’. Devia haver alguns limites. Segundo Alvim, em fevereiro de 1965, emergiu uma crise na direção do Correio da Manhã em virtude de uma das crônicas de Carlos Heitor Cony, que pediu demissão. O redator-chefe, Antônio Callado, imediatamente também ‘se demitiu do cargo que ocupava há apenas dois meses, no jornal que havia publicado, em abril de 1964, o artigo Volta o barril, recusado pelo Jornal do Brasil, do qual era um dos principais redatores’ [Idem, página 13]. Tanto Cony como Callado, que no momento do Golpe apoiaram a derrubada de João Goulart, foram processados pela Lei de Segurança. Callado esteve preso, foi cassado pelo AI-5 e ‘ainda recebeu uma punição invulgar: a proibição de trabalhar em qualquer empresa de comunicação, isto é, de exercer sua profissão’ [idem]. Mas ‘o castigo durou poucos dias: até o cronista social Ibrahim Sued, arauto da revolução e amigo pessoal de Costa e Silva, protestou contra a medida absurda e desumana’ [idem].


Em seus artigos coletados e publicados em O golpe de 64: a imprensa disse não, Callado enxerga os acontecimentos como se a ‘revolução’ estivesse apenas se degenerando. O Golpe foi certo, mas seus desdobramentos errados: ‘Seu objetivo inicial – a deposição de Jango – teve cobertura grande porque o Presidente estava levando o país à anarquia. (…) é inegável que o Brasil descia sem freios uma encosta que ia dar no caos’ [idem, página 19]. Com o título Volta o barril, este foi o artigo publicado em 12/4/64, no Correio da Manhã depois de ter sido recusado no JB, segundo Thereza Cesário Alvim. Não era uma crítica ao golpe em si, mas aos rumos que a ‘revolução’ estava tomando.


Os idos de março


Grande escritor brasileiro, um ‘imortal’. Antonio Callado foi um herói na luta contra a ditadura, mas apoiou o golpe sim. E de certa forma o início da ditadura também, de tanto que atacou Jango naquele momento. Mesmo depois do golpe. Portanto, podemos até dizer que ajudou a legitimar o regime recém instalado.


Um livro que reuniu oito jornalistas da redação do Jornal do Brasil, publicado em maio de 1964, no calor dos acontecimentos, e intitulado Os idos de março e a queda em abril, é um excelente documento de época.


Antonio Callado escreveu o capítulo Jango ou o suicídio sem sangue, onde pintou um quadro nada favorável do Presidente João Goulart. Para Callado Jango era inepto, sabia-se despreparado e não perdia a ‘mania’ de aumentar o salário mínimo, ‘vício’ que adquirira quando ocupou o Ministério do Trabalho no Governo de Getúlio Vargas. Jango é comparado a Hamlet, e seu pai seria Getúlio, cuja alma penada vagava feito fantasma porque não havia sido vingada [CALLADO, Antonio. In DINES, Alberto. Página 247.]. O texto é muito bem escrito. E demolidor.


Outros não ficam atrás. Carlos Castello Branco, no capítulo Da conspiração à revolução, afirmou que quando em março e abril de 1963 o deputado Leonel Brizola deu um prazo para o Congresso Nacional votar as reformas de base, sob a ameaça de procurar outros caminhos, ‘iniciava-se entre nós a pregação ostensiva da revolução’ [BRANCO, Carlos Castello. In DINES, Alberto. Op. Cit. Página 279]. O jornalista Castello Branco fez o relato da conspiração entre os militares que deram o Golpe. Mas para ele foi uma ‘revolução’ sem a característica dos ‘golpes habituais’, ‘na medida em que gerou direito’, ‘reformou a constituição’ e representava uma nova dimensão do ‘legalismo’ das forças armadas [Idem, página 306].


Finalmente, fechando o volume, em seu texto Debaixo dos deuses, Alberto Dines, organizador da obra, escreveu, da redação do Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro, o seu diário daqueles acontecimentos. Para Dines o Golpe de 1964 foi uma eleição, um ato heróico. Ele destacou, a ‘marcha da vitória’ do dia 2 de abril, e fez questão de ressaltar os aplausos recebidos pela redação do Jornal do Brasil [DINES, Alberto. Op. Cit. Página 353], na época sob sua direção.


[Nota do OI: O articulista faz uma leitura equivocada do texto de Os idos de março e a queda de abril (404 pp., José Álvaro Editor, Rio de Janeiro, 1964), que teve excertos publicados na edição 270 deste Observatório. No tocante à ‘eleição’, lê-se ali o seguinte: ‘Compreendemos: não foram só os generais que derrubaram Jango. Quem derrubou Jango foram os que não saíram para defendê-lo. Tratava-se de uma eleição. Houvera uma opção clara. Não foram os planos militares que derrotaram as esquerdas. Foram os sentimentos contra elas.’  No trecho relativo a 2/4/1964, está escrito: ‘Dia 2, à tarde – A Marcha da Família com Deus pela Liberdade estava marcada há mais de 15 dias. Converte-se hoje numa marcha da vitória. Quase um milhão de pessoas comprimia-se na Avenida Rio Branco. Passa diante do Jornal do Brasil e aplaude. Há muito tempo que isto não acontece. Um milhão quase canta calmamente a sua vitória. Povo.’]


Aliás, a história do Jornal do Brasil durante a ditadura é controversa. O jornalista Janio de Freitas oferece sua visão do comportamento dos jornalistas no Golpe e na Ditadura:




O comportamento das chefias de Redação em 1964 e daí em diante foi o pior possível. Hoje em dia ouço muito em falar ‘O Jornal do Brasil fez’, ‘O Jornal do Brasil protestou’. Que eu sabia não. E eu duvido que prove. Os jornais fizeram o jogo do golpe, depois fizeram o jogo do regime militar. E não foi militar sentado nas redações que estavam fazendo jornal não. Era jornalista profissional. Não só apoiou o golpe. Depois continuou servindo integralmente ao regime militar. Integralmente. Quanto a isso não há a menor dúvida, basta pegar os jornais antigos. Há mil episódios. Quando começam aqui no Rio, e no Brasil, os movimentos armados, as primeiras ações armadas, quem passa a absurdamente chamar os participantes desses movimentos de ‘terroristas’, como ficou consagrado na imprensa brasileira, não foram os militares, não. Isso foi dado na redação do Jornal do Brasil por um jornalista que hoje se diz democrata [http://www.fazendomedia.com/novas/politica210905a.htm. Último acesso em 8/8/2006].


O jornalista José Silveira, secretário de redação do JB na época, também afirmou que o Jornal do Brasil foi o primeiro a utilizar o adjetivo terrorista para nomear os militantes da luta armada, mas não confirmou que foi uma recomendação do governo:




Eu não sei se houve alguma instrução superior para chamar os caras de terroristas, mas o Jornal do Brasil foi o primeiro a chamar os caras da luta armada de terroristas [ABREU, João Batista de. As manobras da informação. Rio de Janeiro: Editora Mauad/Ed. UFF, 2000. Página 25].


No decorrer da ditadura, ‘mesmo figuras tradicionalmente ligadas ao governo eram censuradas, se assumissem posições mais críticas ou dissidentes’ [PEREIRA, Álvaro. In. SEABRA, Roberto. Jornalismo Político. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006. Página 95]. Por isso que muitos jornalistas conseguem posar de vítimas da ditadura tranquilamente, é a melhor bolsa-ditadura que recebem até hoje.


O fato é que a ‘revolução’ tomou rumos que desagradaram até mesmo muitos daqueles que apoiaram o Golpe de 1964. Portanto, ter participado de uma forma ou de outra do movimento que derrubou o Presidente João Goulart, ou ter dado qualquer sustentação ao regime que rompeu com a normalidade constitucional, é uma lembrança que muitos prefeririam apagar da memória – e da história.


Afinal, sejamos francos, quem gostaria de ser publicamente responsabilizado por ter ajudado a abrir esta Caixa de Pandora?

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Historiador e mestrando em história da UERJ