Com o tema “corrupção” em voga nas conversas e pelos noticiários, lemos e ouvimos a proliferação de lugares-comuns de viés histórico, em geral reforçados pela grande mídia – que o jornalista Gondin da Fonseca tratava ironicamente de “imprensa sadia” nos anos 1950/60. Dentre os estereótipos, muitos dizem respeito às obscuras origens e \ ou causas de tal fenômeno no Brasil.
A corrupção como herança maldita
É um equívoco atribuir à colonização portuguesa uma responsabilidade maior na corrupção existente no Brasil – como se houvesse uma inevitável herança maldita. Se olharmos para as sociedades colonizadas por outras potências europeias (Holanda, Inglaterra e França, por exemplo) em vários continentes, não será difícil concluir que os resultados são equivalentes neste aspecto, claro, com particularidades.
Questionável é a afirmação de que o Brasil tornou-se um país de ladrões porque seus primeiros povoadores foram criminosos da pior espécie – enviados de Portugal para colonizar a terra recém-descoberta. Seria tão fácil explicar assim… Este é um típico “alarme falso” histórico. Em primeiro lugar, cabe a pergunta básica: quem eram, afinal, estes degredados? Muitas das condenações eram por motivos políticos, religiosos ou de costumes, conforme pesquisa do historiador Geraldo Pieroni. Surgiu daí um mito de origem nacional: tais Adões e Evas seriam os geradores de um povo degenerado. O impacto destes exilados no povoamento brasileiro foi pequeno e a maioria voltou para Portugal após cumprir pena. E imaginar que todos os descendentes daqueles que ficaram no Brasil, ao longo de séculos, perpetuariam um comportamento tido como desonesto (no critério oficial dos séculos XVI a XVIII)… convenhamos, é preciso imaginação fértil. Deixemos os degredados no campo do passado histórico e tratemos de assumir, nós mesmos, degradados, nossos problemas…
Uma prática desnaturalizada
Outra ideia facilmente encontrada no mercado das palavras que circulam é a de que “antigamente era assim mesmo”. Ou seja, uma naturalização do passado em seus aspectos de violência e conflito. Verdade que há provas longínquas, desde o primeiro governo do Brasil, o de Tomé de Souza, que foi autorizado pelo rei D. João III em 1549 a fazer “dádivas a quaisquer pessoas” a fim de consolidar a conquista das terras brasileiras. Ou seja, quase meio século depois da passagem de Cabral. Tomé de Souza foi um exímio tocador de obras e pode-se dizer que inaugurou o estilo “rouba, mas faz”. O primeiro governador gastou no seu triênio quantia considerada excessiva na época, 300 mil cruzados, em soldos, ordenados de ministros, edifícios da Sé, casa dos padres da Companhia, ornamentos, sinos, artilharia, gados, roupas, etc. O dinheiro rolou solto. Afinal, o rei ordenara que seu enviado ao longínquo Brasil poderia fazer “algumas dádivas a quaisquer pessoas que sejam”. E assim foi feito.
Tais práticas já eram criticadas pelos contemporâneos. Conta frei Vicente de Salvador, cronista e historiador naquela época, que ao saber por um meirinho (funcionário da Coroa) que chegara de Lisboa a nau que o levaria de volta, encerrando sua administração, Tomé de Souza desabafou:
– Vedes isso, meirinho, verdade é que eu o desejava muito, e me crescia a água na boca quando cuidava em ir para Portugal, mas não sei que é que agora se me seca a boca de tal modo, que quero cuspir, e não posso.
Com a sutileza dos franciscanos, frei Vicente anotou: “Não deu o meirinho resposta a isto, nem eu a dou, porque os leitores deem a que lhes parecer.” Sobre outro Governador Geral do Brasil, Luís de Souza, entretanto, opinou o mesmo cronista: deixou “a todos saudosos com a sua ausência, porque nunca por obra, nem por palavra fez mal algum, e foi mui rico sem tomar o alheio”. A resposta dos leitores à pergunta de frei Vicente não é difícil de encontrar: Tomé de Souza inaugurou entre nós o “governo da boquinha”.
O passado dourado
A imagem de um passado dourado, paraíso perdido, é recorrente em momentos de crise. A mistura entre o público e o privado era vista como prática condenável por algumas consciências críticas durante o período imperial brasileiro (1822-1889). O jornalista de oposição Borges da Fonseca, por exemplo, chamava D. Pedro I ironicamente de “Caríssimo”, não por considerá-lo um “Prezado” monarca, mas em referência às enormes verbas que a Casa Imperial consumia dos cofres públicos. Diga-se de passagem que Borges da Fonseca foi preso várias vezes por sua combatividade, inclusive no Segundo Reinado, enquanto os personagens que ele denunciava continuavam se beneficiando do poder.
Outra voz crítica na imprensa, já durante o governo de D. Pedro II, foi o cartunista Ângelo Agostini . Ele publicou desenhos de gordas ratazanas se apoderando dos cofres públicos. Também o chargista Rafael Bordalo Pinheiro, denunciou como o imperador de barbas brancas era conivente com o nepotismo e roubalheira, literalmente passando a mão na cabeça de políticos e administradores. A Casa Imperial sob D. Pedro II também possuía grandes verbas, algumas, como o chamado “Bolsinho do Imperador”, de caráter pessoal, da qual o monarca era dispensado de prestar contas.
Casos sem conta ocorreram durante a terrível seca de 1877. Calcula-se que faleceu um terço da população cearense, cerca de 200 mil pessoas. Drama assim, tão dolorido, causou gestos generosos, solidários, mas esteve também cercado de todas as formas de corrupção. A governamental: d. Pedro II teria afirmado, segundo se difundiu na época e se fala ainda hoje no Ceará, que venderia até a última pedra de sua coroa para que não morresse um flagelado de fome. É possível comprovar que a coroa do imperador encontra-se, resplandecente, em exposição no Museu Imperial, Petrópolis (RJ).
Diante da repercussão do drama da seca, os governos (ministérios conservador e liberal) liberaram verbas, insuficientes em alguns momentos, contestadas pela oposição, em outros. A oposição afirmava que a seca era uma farsa, pretexto para o governo gastar. A agilidade da liberação dos recursos perdia-se em desvãos burocráticos e disputas partidárias. Correram denúncias de que atravessadores e responsáveis pela distribuição da verba enchiam os próprios bolsos, em prejuízo das vítimas da seca. O jornalista e líder abolicionista José do Patrocínio foi ao Ceará e, horrorizado, testemunhou: havia encarregados da entrega da verba que se aproveitavam para prostituir jovens famintas que, tempos depois, faleciam de sífilis.
A afirmação de que o Segundo Reinado foi um período de paz e honestidade não tem fundamento. Havia corrupção sim, e nem sempre naturalizada. A crônica histórica sobre corrupção dos períodos colonial e imperial ainda está por ser feita. Não existiram registros de grandes escândalos, como os atuais, mas sabe-se que eram práticas pulverizadas em administrações locais, entre parte da população e com o envolvimento e conivência diretos dos principais governantes, como os D. Pedros I e II.
Alarme falso
Há denúncias e campanhas contra a corrupção que soam como “alarmes falsos”: servem, em geral, para atacar os acusados por outros motivos, não assumidos claramente. E, sobretudo, trazem um paradoxo: os alarmistas costumam praticar, com alguma frequência, aquilo de que acusam seus adversários, criando uma cortina de fumaça…
É marcante nas clivagens políticas atuais uma tradição do udenismo, em sua vertente lacerdista. Apresentar a corrupção como causa principal ou única de todos os males da sociedade. Convém refrescar a memória ou iluminar os esquecimentos. Quem sabe do calcanhar de Lacerda? Carlos Frederico Werneck de Lacerda (1914 – 1977) foi o político brasileiro que realizou as mais famosas campanhas moralizantes na história do país, através da tribuna da imprensa e da União Democrática Nacional (UDN). Campanhas explosivas. A ponto de ficar conhecido como demolidor-de-presidentes. O “Mar de Lama” que culminou no suicídio de Getúlio Vargas, as acusações sobre a construção de Brasília, as brigas e pressões que levaram Jânio Quadros à renúncia e as denúncias de “subversão e corrupção” que serviram de palavra de ordem ao golpe de 1964 que destituiu João Goulart – foram episódios precedidos da figura e das palavras incendiárias, estilo panfletário, daquele que era tratado pelos adversários – graças a uma caricatura – pelo apelido de O Corvo. A tônica de seus discursos, neste campo: defesa da moralização pública, “faxina” na administração, demissão dos corruptos, eficiência administrativa, bons costumes e decência; ataque pessoais violentos a governantes adversários tidos como ladrões e depravados.
Diz o provérbio que qualquer um, visto de perto, tem problemas. Pode ser. Quem conhece a história de Raul Miranda Santos? Ou, simplesmente, Raul Barulho? Notório contraventor e contrabandista de armas, ligado à cúpula do jogo-do-bicho no Rio de Janeiro dos anos 1940-70. Após ser eleito governador do novo Estado da Guanabara em 1960, Lacerda fez viagem internacional, acompanhado, entre outros, de Raul Barulho.
O escândalo veio a público logo no primeiro semestre de 1961. A oposição acusava: a campanha de Lacerda ao governo fora financiada pela contravenção. O governador defendeu-se, mas apareciam evidências. Foi aberta uma CPI do Jogo do Bicho na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, que acabou abafada pela bancada governista.
Seria a corrupção genética e incontornável?
A corrupção é característica do comportamento humano e, não, uma especificidade brasileira, não faz parte de um inexistente código genético nacional. É difícil acreditar em corrupção única e atemporal que se mantém ao longo das gerações, passando de pai para filho. Difundem-se corrupções diversificadas que se reinventam, ou melhor, são reinventadas a cada dia, em cada tempo histórico. Na medida em que a sociedade brasileira foi se tornando maior e mais complexa, historicamente, a corrupção acompanhou estas transformações.
Quantificar e comparar por períodos o tamanho da corrupção no Brasil é um blefe, do ponto de vista do rigor da pesquisa histórica. Não há dados do passado disponíveis ou conhecidos para que se possa assegurar, em conhecimento de causa, que tal ou qual momento histórico é o campeão de todos os tempos em roubalheira. Afirmações categóricas com ares científicos só servem para legitimar, de forma mascarada, opiniões políticas pré-definidas.
Naturalizada, manipulada, invertida, vivida como fatalidade maldita – a corrupção, hidra cheia de artimanhas, aparece de lobo em pele de cordeiro. O mais antigo registro da palavra em português foi há 720 anos: corrompudo. Mas será possível acreditar que, ao longo desse tempo, todas as pessoas foram corruptas? Cada um de nós conhece, ou conheceu, pessoas que não se corromperam. Ao menos uma, em geral mais de uma. Seriam exceções? Há exemplos de não corruptos. Públicos e notórios, mas também anônimos, os flagrados em ação de honestidade chegam até a virar notícia, assim como seus antagonistas, os que roubam. Gestos e atitudes de honestidade são numerosos, incontáveis.
Os maniqueísmos não dão conta das complexidades. Mesmo que haja linha demarcatória entre honestidade e desonestidade, nem sempre é possível dividir a humanidade entre corruptos e não corruptos. A variedade é enorme, assim como o ser humano é complexo. Há os corruptos chamados “meia porção”, os de ocasião, os pontuais, os arrependidos e os tardiamente pervertidos. Os que só pegam leve e só agem escondidos. Há os que se revelam quando surge a ocasião. Mesmo que o implacável humorista Millôr Fernandes tenha afirmado que não existe “meio-virgem”.
Círculo viciado e vicioso
É vital para uma sociedade combater a corrupção. O mundo será melhor na medida em que ela diminuir (se acabasse então, melhor ainda). Porém, estou convencido de que o fim (não custa sonhar) da corrupção não tornaria um país mais justo. Muita gente boa acha que a sociedade é adequada, a ordem social, econômica e política boa ou equilibrada e que, eliminada a corrupção, tudo estaria no seu lugar. Se a estrutura social é baseada em injustiça, violência e desigualdade, o fim da roubalheira do dinheiro público (e, mesmo, a mudança de comportamento da população em geral) não seria suficiente para vivermos numa terra sem males.
A pobreza e o mau funcionamento da administração pública que estão em nossa volta não são causados, apenas, pela corrupção. Esta, não é somente causa, nem a única, mas também efeito e consequência da injustiça. Ambas estão ligadas. É importante combatê-las, a desigualdade e a desonestidade, juntas. O fim de uma não implica na extinção da outra. Os governos que não rompem com estas duas (e duras) tradições gêmeas acabam prisioneiros, aprisionando a todos num círculo viciado e vicioso que, como resultado da ação humana, pode vir a ser transformado.
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Marco Morel é historiador, jornalista e autor de “Corrupção mostra a sua cara”, Editora Casa da Palavra, 2012.