Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Páginas de uma história gloriosa

Todos conhecem o esplendor da belle époque, quando a dinheirama da exploração da borracha, entre o final do século 19 e as duas primeiras décadas do século seguinte, financiou uma vida exuberante nas duas maiores capitais da Amazônia, Belém e Manaus. Mas raros trataram dos negócios escusos e dos esquemas ilícitos que drenaram boa parte dessa renda para poucos bolsos. Uma das fontes excepcionais dessa história não oficial está nas 619 edições do Correio do Pará, o jornal que Bento Tenreiro Aranha II escreveu, às vezes quase sozinho, entre 1892 e 1894.

A coleção desse jornal está praticamente completa, em microfilmes, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Consultando-a, o historiador Vicente Salles (que completará 75 fecundos anos em novembro) garantiu que a saga desse pequeno e bravo periódico fosse transmitida aos leitores de hoje. Numa série de artigos, originalmente publicados em A Província do Pará e depois reunidos em Marxismo, socialismo e os militantes excluídos (Editora Paka-Tatu, 171 páginas, 2001), ele mostra o combate que Tenreiro Aranha deu às concessões feitas pela administração pública a particulares, através de contratos leoninos em favor do concessionário, que enriquecia rapidamente. O presidente da província (o governador na fase imperial), José Coelho da Gama e Abreu, o barão de Marajó, concedeu o monopólio do serviço de água ao americano Edmund Crompton, que o transferiu à Companhia das Águas do Gram-Pará, da qual, por mero acaso, naturalmente, era o barão o principal acionista.

Prisão e multa

Quando o Correio denunciou o ‘contrato das águas’, o império fora substituído pela república, mas para Gama e Abreu (hoje nome de rua) isso nada significou: ele era intendente (prefeito) de Belém. Nem se preocupou em contestar as seguidas matérias escritas por Tenreiro Aranha, o terceiro de uma genealogia com participação importante nas histórias do Pará e do Amazonas (seu avô instalou a província do Rio Negro, sendo seu primeiro presidente): ‘A resposta, silenciosa e eficiente, foi dada via tribunais. O jornalista foi processado pelo ‘crime de injúria impressa’’, informa Vicente Salles, acrescentando:

‘A questão se limitou às páginas do Correio Paraense, forçado a tratar do assunto durante vários meses, com extensas matérias. Está claro que a justiça é dos poderosos, dos que fazem as leis, e Bento Aranha sentiu o peso da lei. Lamentavelmente, a questão desvia o jornal do interesse coletivo, empenhando-se ele na defesa da própria pele’.

Bento Aranha foi condenado a nove meses de prisão e a pagar 800 mil réis de multa, a pena máxima prevista no artigo 319 do Código Penal então vigente, não pelo crime de subversão, mas pelo de injúria, pela justiça estadual. Teve que abandonar o seu jornal e se refugiar com amigos, no interior do estado. A tradição no Pará era mais de empastelamento de jornais e perseguição a jornalistas do que de apreço pela liberdade de expressão e de imprensa.

Perseguida, escondida

O próprio jornalista, embora pioneiro da causa republicana no Pará (considerava-se o mais velho republicano no Estado), não ignorava a ameaça que pesava sobre sua atividade, mesmo sob o regime republicano pelo qual lutara durante mais de duas décadas. Escreveu no número sete do seu jornal, com sua linguagem clara e direta:

‘Os tribunais de justiça foram constituídos por vendilhões, que mediante qualquer preço e a quem mais vantagem lhes ofereça, vendem a consciência, deturpam a justiça, violam o direito e manifestam ostensivo desprezo à lei!’.

Vicente Salles lamenta a falta de atenção dos historiadores para esse ‘jornal de idéias’, aquele que ‘se opôs mais vigorosamente ao status quo‘. Mas não tem dúvida: ‘Certamente, os dois anos de sua existência contam a história tumultuada dos primeiros tempos da República no Brasil – e no Pará’.

Uma história perseguida e escondida, mas que pulsa à espera de quem a descubra e a reapresente aos que devem aprendê-la melhor, se não quiserem ser esmagados pelos déspotas de sempre.

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Editor do Jornal Pessoal, Belém (PA)