Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Paixão e morte na virada do século

‘Matou a esposa com uma punhalada’. ‘Neurastenia sangrenta’. ‘Do ciúme ao crime’. ‘Matou a amante’.

Manchetes como essas no Jornal do Commercio e A Noite agitavam a população do Rio de Janeiro ao final do século 19 e primeiras décadas do 20.

As agressões passionais não eram, evidentemente, uma novidade daquele período. Até início do século 19, as situações de infidelidade eram reguladas pelas Ordenações Filipinas, que permitiam ao marido ‘traído’ o direito de matar sua esposa e o rival, desde que este último não fosse de ‘maior condição que o marido’ – nesses casos exigia-se a intervenção da Justiça Régia.

No Brasil dos tempos do Império, o adultério passou a ser punido pelo Código Criminal de 1830: a esposa adúltera poderia cumprir pena de prisão (um a três anos), com trabalhos forçados; enquanto somente o marido que possuísse concubina ‘teúda e manteúda’ – ou seja, que mantivesse publicamente relações estáveis – seria punido com a mesma sentença. Aqueles que provassem ter cometido o homicídio ‘sem conhecimento do mal’ nem ‘a intenção de o praticar’, ou que fossem considerados ‘loucos de todo o gênero’, poderiam ser absolvidos.

Após a Proclamação da República, o Código Penal de 1890 abriu a possibilidade (Artigo 27) de absolver, ou amenizar as penas dos acusados de crimes passionais, usando o argumento da privação dos sentidos ou da inteligência durante o crime. A defesa buscava provar que eram irresponsáveis por seus atos porque haviam agido sob os impulsos da ‘duradoura paixão’ ou da ‘súbita emoção’. Concedia-se assim um papel decisivo no tribunal às correntes da medicina mental que conferiam aos estados emocionais e passionais o status de obsessão, uma espécie de loucura que poderia atingir indivíduos considerados sãos.

O impacto dos casos passionais na época também chamou a atenção dos cronistas, rastreadores que eram das coisas miúdas do dia-a-dia. A princípio, as crônicas mostram uma forte tendência a considerar a mulher como a culpada, mesmo quando era a vítima. Raul Pompéia (1863-1895), por exemplo, em 2 de agosto de 1888, ao narrar a tragédia de Umbelino Silos, que assassinou Antônio Ramos, amante de sua ex-esposa, responsabiliza Maria de Silos: ‘uma pardinha de vinte anos, pobre criatura sem educação nem senso moral, anêmica de corpo e alma’.

E o estereótipo da mulata com ‘grandes olhos molhados de volúpia, boca vermelha e ardente, seio alto, ancas despenhando-se numa curva enérgica, desafiava o pecado no modo de andar, de olhar…’ foi usado por João Luso (1875-1950) para caracterizar, no conto Carta da terra, a personagem Bemvinda, pivô do assassinato de seu suposto amante Ramiro, por seu marido Antônio Pataco.

‘Fim trágico’

Na crônica Crimes passionais, de João do Rio (1881-1921), ele se refere aos assassinos que conheceu como ‘vítimas do amor’ que, apesar de tudo, protegem as mulheres que agrediram resguardando seu perfil de ‘destruidoras’.

Seu raciocínio benevolente, porém, não se aplica às fêmeas – Herculana, que matou o amante numa briga, é qualificada por João do Rio como ‘uma fera’ destituída da razão. Ferozes e irracionais ou frias e racionais, as mulheres são vistas por ele como agressoras atrozes e traiçoeiras ‘por natureza’.

Um dos mais populares escritores brasileiros nos anos 20 e 30 do século 20, o jornalista Benjamin Costallat (1897-1961) defendia, em sua crônica Os plagiadores do crime, que os assassinatos que se ‘propagavam assustadoramente’ na cidade do Rio de Janeiro resultavam do plágio: ‘era sempre o mesmo marido desconfiado ou o mesmo amante ciumento que matava a mesma mulher adúltera ou a mesma criatura leviana’. Mais uma vez as mulheres são responsabilizadas pela violência que sofrem, passando de vítimas a algozes.

Na mesma época, Orestes Barbosa (1893-1961), mais famoso hoje como autor da música Chão de estrelas, afirmava, sem muita cerimônia, que as mulheres eram ‘animaizinhos interessantes e gostosos’; e na crônica Um passional atribuía o estigma dos ‘homens fracos que se deixam dominar pelas mulheres’ a Alberto Russo, que assassinou o rival com vários tiros.

Os cronistas expressam assim uma concepção que atualizava, no contexto da modernidade brasileira, velhos valores que vinculavam à natureza feminina tendências a um comportamento condenável. Além disso, reafirmavam a idéia de que a culpa e a punição não deveriam ser estabelecidas pelo delito em si, mas sim pela natureza e/ou o comportamento sexual de delinqüentes e vítimas. O motivo a partir do qual seria possível caracterizar o crime e determinar a índole dos criminosos assumia uma importância crucial para a absolvição, condenação e fixação das penas.

Era esse tipo de enfoque que embasava a opinião mais indulgente de alguns cronistas em relação aos acusados de crimes passionais. João do Rio, por exemplo, não chega a fazer uma explícita defesa desses criminosos, mas é inegável sua simpatia diante do destino dos protagonistas masculinos em Crimes de amor: ‘Todos tinham chegado ao mesmo fim trágico, ontem criaturas dignas, hoje com as mãos vermelhas de sangue, amanhã condenados por um juiz indiferente’.

Relações afetivas

Um pouco antes da aprovação do código penal republicano, posturas diferentes começam a ser veiculadas. Em 27 de janeiro de 1889, Raul Pompéia publica outra crônica só que desta vez condenando a complacência diante de criminosos que agiam sob o impulso de um ‘desvario da paixão’.

João Luso também passa a discutir a legitimidade de se matar por amor na crônica Educação: ‘Mata-se a pessoa a quem se ama com a mais incoerente, a mais apavorante facilidade’. E responsabiliza também os padrões de masculinidade que os rapazes receberam desde pequenos através da educação, como as ‘noções de amor próprio intransigente, ferocidade exclusivista, confiança na impunidade’.

Dois cronistas, porém, sempre atacaram a impunidade dos criminosos passionais. Coelho Netto (1864-1934), na crônica A brecha, caracteriza o argumento da privação de sentidos como a ‘chave da cadeia’ que franqueia ‘saída a todos os criminosos que dispuserem de meios políticos ou circulantes’, criticando seu uso para livrar os assassinos de adversários políticos, além de rivais em amor ou apenas desafetos.Mas o alvo maior de seus ataques era o tribunal do júri, então tema de debate no campo jurídico sobre a sua manutenção, ou não, no Brasil. O júri popular deveria ser responsabilizado, segundo ele, por decisões como a absolvição dos ‘matadores de mulheres’.

Mas Lima Barreto (1881-1922) foi um dos primeiros a se opor à absolvição ou à suave condenação dos uxoricidas, como eram chamados os maridos que assassinavam esposas. Os costumes que conferiam ao homem o direito de matar a mulher adúltera eram tachados por ele de ‘selvagens’ e ‘bárbaros’. Defensor do divórcio e crítico do casamento, Lima Barreto acusa as feministas de não lutarem contra essa ‘ordem, que tende a se perpetuar entre nós, aviltando a mulher, rebaixando-a ao estado social da barbárie medieval, de quase escrava’. E na crônica Mais uma vez, ele reprova a conduta do advogado Evaristo de Moraes, não o perdoando por defender criminosos passionais, sendo ele o liberal, o socialista quase anarquista que inspirava tanta admiração.

As posições desses cronistas ilustram as controvérsias em torno dos crimes da paixão nas primeiras décadas da República, quando estavam em disputa diferentes projetos de modernização da sociedade brasileira que pretendiam divulgar padrões – burgueses – para as relações afetivas, sexuais e familiares, bem distintos dos que eram compartilhados pela maioria da população.

Tragédia rodrigueana

Caso os protagonistas não fossem celebridades do mundo artístico, a notícia de um desquite amigável não sensibilizaria, hoje, nem mesmo o editor de uma revista de fuxicos. Mas numa época em que o preconceito punha a mulher desquitada no mesmo patamar das prostitutas, um caso banal de separação motivou um dos crimes mais clamorosos da primeira metade do século 20, no Rio de Janeiro: o assassinato do desenhista Roberto Rodrigues, irmão do futuro dramaturgo Nelson Rodrigues.

Mário Rodrigues, pai de Roberto e de Nelson, era o proprietário da Crítica, jornal influente politicamente e ao mesmo tempo ‘um foliculário de escândalos’, nas palavras do escritor Gilberto Amado. Em 26 de dezembro de 1929, dia de pouca notícia, já que na véspera se comemorara o Natal, a Crítica saiu com a seguinte manchete: ‘Entra hoje em juízo nesta capital um rumoroso caso de desquite’. O que vinha abaixo era veneno puro.

O jornal acusava Sílvia Tibau, uma bela jornalista e literata de 27 anos, de haver traído o marido, o médico João Tibau Jr., com quem tinha dois filhos pequenos, com o também médico Manuel de Abreu, que se notabilizaria depois como o inventor da abreugrafia, sistema de miniaturização de chapas de raios X que teve largo emprego no Brasil.

A matéria, escrita no estilo enfeitado típico da época e transpirando um falso moralismo do começo ao fim, revelava alguns detalhes escabrosos. Segundo o redator, o ‘esculápio’ Manuel de Abreu, além de seduzir ‘madame Tibau’ no próprio consultório, teria causado sérios danos à pele ‘marmórea e sensual’ da amante ao tentar extirpar de suas pernas, usando raios X, ‘algumas expressões capilares pronunciadamente espessas’.

No mesmo dia em que saiu a reportagem, Sílvia Tibau dirigiu-se, muito bem vestida, à redação da Crítica, no centro do Rio. Queria falar com Mário Rodrigues. Como ele não estava, pediu uma conversa reservada com Roberto. Sacou de repente um revólver da bolsa e deu-lhe um tiro à queima-roupa. Profundamente abalado, Mário morreria 77 dias depois do filho, em conseqüência de uma trombose cerebral.

Depois de furiosa campanha pela condenação de Sílvia Tibau – chamada pelo jornal de ‘literata do Mangue’ e ‘cadela das pernas felpudas’, entre qualificativos ainda mais pesados – a Crítica, que defendia a candidatura de Júlio Prestes à Presidência, foi empastelada por simpatizantes de Getúlio Vargas, em 1930, e acabou.

Sílvia Tibau também teve um fim trágico. Envolvida num processo de falsificação de documentos e abandonada por um tenente-aviador por quem se apaixonara, suicidou-se, ao lado do filho que tivera com ele, numa cama da enfermaria da Casa de Detenção de Niterói, em 1936.

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Professora-adjunta de História na Universidade Federal Fluminense, especialista em História do Brasil e autora do artigo ‘Paixão, crime e relações de gênero (RJ, 1890–1930)’, na revista Topoi, nº 1, da UFRJ