Abre parêntese: há momentos – felizmente raros – em que a história pessoal se impõe às percepções conjunturais e o relato na primeira pessoa, embora singular, parcial, às vezes suspeito, sobrepõe-se à narrativa impessoal, ampla, genérica. Fecha parêntese.
O descaso e os indícios de esquecimento que na sexta-feira (8/5), rodearam os setenta anos do fim da fase europeia da Segunda Guerra Mundial sobressaltaram. O ano de 1945 pegou-me com 13 anos e a data de 8 de maio incorporou-se ao meu calendário íntimo e o cimentou definitivamente às efemérides históricas que éramos obrigados a decorar no ginásio.
Seis anos antes (1939), a invasão da Polônia pela Alemanha hitlerista – e logo depois pela Rússia soviética – empurrou a guerra para dentro da minha casa através dos jornais e do rádio: as vidas da minha avó paterna, tios, tias, primos e primas dos dois lados corriam perigo. Em 1941, quando a Alemanha rompeu o pacto com a URSS e a invadiu com fulminantes ataques, inclusive à Ucrânia, instalou-se a certeza: foram todos exterminados.
A capitulação da Alemanha tornara-se inevitável, não foi surpresa, sabíamos que seria esmagada pelos Aliados. Nova era a sensação de paz, a certeza que começava uma nova página da história e perceptível mesmo para crianças e adolescentes A prometida quimera embutida na frase “quando a guerra acabar” tornara-se desnecessária, desatualizada.
A guerra acabara para sempre. Inclusive para nós brasileiros, os únicos latino-americanos que foram ao Velho Mundo ensinar que o ódio não era a solução, sobretudo o ódio aos “diferentes” e “inferiores”. Enquanto os destacamentos da Força Expedicionária (FEB) e da Força Aérea Brasileira (FAB) retornavam da Itália e eram delirantemente recebidos na Avenida Rio Branco, da ex-capital federal, matutinos e vespertinos – mais calejados do que a mídia atual – nos alertavam que a guerra continuava feroz não apenas no Extremo Oriente, mas também na antiquíssima Grécia, onde guerrilheiros de direita e de esquerda, esquecidos do inimigo comum – o nazifascismo – se enfrentavam para ocupar o vácuo de poder deixado pela derrotada barbárie.
Sete décadas depois – porção ínfima da história da humanidade –, aquele que foi chamado Dia da Vitória e comemorado loucamente nas ruas do mundo metamorfoseou-se em Dia das Esperanças Perdidas: a guerra não acabou. Os Aliados desvincularam-se, tornaram-se adversários. A guerra continua, está aí, espalhada pelo mundo, camuflada por diferentes nomenclaturas, inconfundível, salvo em breves hiatos sem hostilidades, porém intensos ressentimentos.
Modelo de paz
Gerenciadora da memória, nossa imprensa deixou escapar um marco importantíssimo na história da humanidade. Deixou para o dia seguinte o registro álgido das solenidades, passou para as gerações seguintes a sensação de que nada de importante acontecera e que a História é um mero conjunto de histórias encerradas. Sabemos que não é.
A Guerra Fria foi quentíssima, continua acesa, sem ideologias, mas com bandeiras tacanhas, esfarrapadas, ainda mais ensandecidas. As Guerras Santas acirraram-se. A deportação de povos inteiros iniciada ainda na Primeira Guerra Mundial com o genocídio armênio e seu mortífero aperfeiçoamento na Segunda Guerra Mundial com o Holocausto dos judeus europeus continua até hoje. Os sucessivos extermínios na África por razões tribais ou religiosas liquidam milhões de inocentes e produzem êxodos e naufrágios que convertem o Mediterrâneo, berço da civilização ocidental, num silencioso memorial de calamidades.
Se a fugaz promessa e a brevíssima paz do 8 de maio não mereceram as devidas comemorações e revivescências, a certeza de que as guerras são contínuas, infindáveis, deveria ser constatada aos brados. Como advertência de que não basta suspender tiroteios ou obrigar vencedores e vencidos a sentarem-se juntos, em pé de igualdade, para assinar uma papelada inútil.
Indispensável extirpar os motivos que levam à loucura nações e civilizações aparentemente sábias e sossegadas. França e Alemanha são admiráveis exceções que não podem ser esquecidas. Compreenderam que conflitos entre nações são transbordamentos de conflitos internos que democracias desleixadas e a demagogia dos canalhas permitem magnificar e espalhar-se.
A Guerra Fria nos impôs a trágica experiência da ditadura militar. Outras guerras distantes poderão nos aproximar e enfiar em confrontos indesejados. Guerras podem começar como casos de polícia, vitrines quebradas e espancamentos – a Noite dos Cristais, a Kristallnacht, na Alemanha de 1938 está aí para nos lembrar que um quebra-quebra pode desembocar em catástrofes além-fronteiras.
Pivôs centrais de cinco catástrofes europeias e mundiais (a partir do século 17 até o 20), França e Alemanha deveriam servir de modelo para construir a paz efetiva, real, funcional.
“Quando a guerra acabar” é o título de um sonho cabível, perfeitamente realizável. Exige apenas a obrigação de lembrar e esperar.
Leia também
Jornalismo cartorial serve apenas como registro – A.D.